O homem nunca fez cerimônia para usar o nome de Deus em proveito próprio. Com boas ou más intenções, Deus sempre foi usado como justificativa para vários atos praticados na terra. O Código de Hamurábi, de 1.800 AC, primeira legislação escrita da humanidade, já buscava a inspiração divina, para implantar a justiça na terra, para destruir os maus e o mal, para prevenir a opressão do fraco pelo forte, para iluminar o mundo e propiciar o bem estar do povo. É bem possível que Hamurábi não tenha compreendido direito a mensagem de seu deus Marduk, pois a Babilônia que governava nunca foi um exemplo de justiça implantada na terra. Aliás, a sua famosa Lei de Talião não passava de uma boa propaganda enganosa, pois o dente e o olho do nobre valiam muito mais que o dente e o olho do pobre.
A cidade francesa de Béziers é outra cidade vítima do uso indevido de Deus. Ela testemunhou o genocídio de quinze mil homens, mulheres e crianças, todos violentados pela intolerância religiosa. O massacre na cidade francesa se dera durante a cruel Cruzada dos Albigenses, que durou de 1209 a 1229. Sob a inspiração do papa Inocêncio III, os cristãos-católicos resolveram combater os cristãos-cátaros, acusados do crime de rejeição a alguns dos sacramentos e dogmas da Santa Igreja Romana. Durante o cerco, não conseguindo os soldados distinguir os católicos dos cátaros residentes na cidade vencida, pediram o aconselhamento de Fernando Amalric, representante do papa na Cruzada. “Mate-os todos, Deus reconhecerá os seus”, foi a resposta obtida, como mais tarde o representante papal escreveu orgulhoso a Inocêncio III que “nem idade, nem sexo, nem posição foram poupados”.
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Aquela cidade de Deus fora, sem dúvida, mero joguete político do homem que somente faz do divino uma mera desculpa para satisfazer ambições pessoais ou de grupos perversos. O que lá ocorrera não é diferente do que está a acontecer nas cidades palestinas, líbias, iraquianas, sírias, afegãs e tantas outras destruídas por guerras nada santas. A violência desmedida, a intolerância explosiva, os guetos descoloridos e as mortes espalhadas são repetições de procissões já percorridas por multidões exaltadas pela fé. Penso que matar a população civil, nestes casos, é compreendido como transferir para Deus o julgamento das almas acusadas de habitar no lugar indevido.
Infelizmente, como na Béziers francesa, nas cidades de Deus brasileiras a descrença estatal em relação à cidadania não poupa ninguém, nem idade, nem sexo, nem posição. Ambientalistas assassinados, mulheres violentadas, pessoas discriminadas, crianças exploradas e adolescentes sem rumos fazem parte do manual não religioso distribuído nas esquinas da vida. Não raro, nessas mesmas cidades, governantes, parlamentares e autoridades são presos ou processados por cobrarem dízimos nas obras e serviços públicos que deveriam pastorar. Flagrados, também aqui invocam o nome de Deus como orientador de suas ações e orações.
Segue-se, talvez, o exemplo da Constituição Federal, que, no seu preâmbulo, sob a proteção de Deus, prometeu fazer do Brasil um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
Esclareço, antes de encerrar, que não faço Deus culpado pelas ações dos que o invocam em orações sem almas. Tampouco faço apologia ao ateísmo. Deus me livre dessas acusações que já fizeram muitos padecerem em fogueiras. O que registro, apenas para reflexão, é que o descaso à pessoa humana, independentemente de sua fé, não pode ser transformado em credo sagrado de uma seita que teima e pretende virar religião. Ela não tem cor, sexo, dono ou a raça. A religião é daqueles alimentos em que o prazer se faz no servir coletivo. Não importa o saciado ou quem invoque o nome de Deus.
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