Bajonas Teixeira de Brito Junior *
No áudio publicado pela revista Época acompanhamos uma sessão de terapia doméstica praticada pelo Dr. Rodrigo Bethlem. Ele se esforça para curar a amnésia da consulente fazendo-a recordar que ele, Bethlem, abriu uma conta na Suíça. Mas ela teima em não admitir o fato. Para reavivar a memória da paciente, que casualmente é sua ex-esposa, ele lança mão de uma abordagem regressiva, refazendo toda a cena em que a conversa sobre a conta teria ocorrido.
A consulta poderia ferir princípios éticos, pois parece que é desaconselhável o atendimento a pacientes aparentados. Embora, se não me engano, Freud tenha analisado a própria filha, Anna Freud, o que abre um precedente importante para o Doutor Bethlem. Além disso, dizem os juristas que esposa não é parente e, portanto, ex-esposa menos ainda o será.
Apesar do zelo curativo de Bethlem, emerge dos autos que estranhamente quem sofre de síndrome do pânico e complexo de perseguição não é a paciente, mas o próprio doutor. E isso ele mesmo confessa logo no início:
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Vanessa – Por que você está falando baixo? Não tem ninguém aqui.
Bethlem – ham?
Vanessa – fala baixo por quê?
Betlhem – Porque eu simplesmente estou paranóico com isso. Só isso…
Vanessa – Paranóico por quê?
Bethlem – Telefone… (ininteligível)
Vanessa – Paranóico por quê?
Bethlem – Telefone. Você não sabe que esses caras entram no telefone e vira um autofalante?
Vanessa – E você tem motivo para estar paranóico?
Bethlem – Como todo mundo. Você acha que alguém vai te denunciar amanhã por quê? Você acha que o (ininteligível) está atrás de mim, por quê?
Vanessa – Por quê?
Bethlem – Porque eu sou alvo, Vanessa.
Vanessa – Por que você é alvo?
Bethlem – Ué, não sei. Inimigo, sei lá por quê… Bom, é… Eu hoje…
O Dr. Bethlem está paranoico. A paranoia é uma psicose das mais nobres, geralmente chamada de loucura. Delírios, alucinações, distorções da realidade, podem estar associados. O sentimento de perigo, de risco, de inimigos espreitando, ou seja, o complexo de perseguição são afecções normais a essa enfermidade. Uma das suas manifestações é a “folie à deux”, a loucura a dois, que muitas vezes acontece justamente com os cônjuges e, mais ainda, ex-cônjuges. Vejam que a paranoia envolve a loucura (folie em francês). Brigas e mágoas levam aos transtornos e hostilidades crescentes e isso afeta lá dentro, toca fundo. O Doutor Bethlem até lembra que a maior mágoa da sua vida foi causada pela paciente.
PublicidadeSe você quer saber, olha, eu, em termos de mágoa, eu acho que a eu que tive com você dificilmente você vai ter uma igual comigo.
A paranoia do Dr. Bethlem, sua folie, pode muito bem ter se originado dessa mágoa profunda. Mas, enfim, isso é aqui pouco relevante. O que importa é que esse paranoico confesso, que teme inimigos imaginários, está diante de uma criatura, sua ex-conjuge, que ele julga sofrer de transtornos mentais. Para tentar curá-la recorrera ao, já mencionado, método regressivo de reavivamento da memória.
A amnésia da ex-esposa levou-a a esquecer que o Dr.Bethlem tem uma conta na Suíça. O doutor, de início com muita calma, vai explicar que isso é um transtorno bipolar. Que sua paciente, que “lembra sempre os que outros dizem”, não pode ignorar que ele tem uma conta na Suíça. Ele tenta assim aplicar um “choque de realidade” na desmemoriada, muito possivelmente uma adaptação do método do Choque de Ordem inventado pelo seu prefeito Eduardo Paes.
Bethlem – Você por acaso não disse que se, por acaso eu não desse a metade para você, muita gente ia gostar de saber que eu tinha conta na Suíça?
Vanessa – Quando… Eu disse isso onde?
Bethlem – Aqui. Eu sentado ali e você aqui.
Vanessa – Que… que conta na Suíça?… Deixa eu te explicar uma coisa… Que conta na Suiça?… E como é que eu poderia dizer isso… primeiro, pra eu dizer isso, eu tenho que, no mínimo, pra dizer tem que provar. Provar que você tem uma conta na Suiça.
Bethlem – Vanessa você disso isso (…) Eu não passei mal à toa, Vanessa. Eu não sou débil mental.
Esse extrato da conversa entre as partes registra o grau de confusão mental em que se encontraria a paciente, segundo seu terapeuta. Ela teima em ignorar que o médico, seu ex-marido, ali de corpo presente, possui uma conta na Suíça. Ela não admite de modo algum essa realidade. Prefere se alienar num mundo de fantasias e ilusões, acreditando na pureza virginal do ex-marido. Seu estado psíquico abalado a levaria talvez a pensar em termos idênticos aos que o deputado escreveu ontem na nota de esclarecimento ao público:
“5. Declaro que nada tenho a temer, que não tenho contas no exterior e que tudo o que fiz nas secretarias por onde passei jamais desabonou minha conduta e que não temo nenhum exame dos atos que tomei na vida pública”
Bem, devemos admitir que essas palavras escritas na nota pública deixam algumas dúvidas: se o doutor Bethlem, no exercício da medicina ilegal, afirma que a ex-esposa tem que saber que ele tem conta na Suíça e que ele morre de medo de denúncias, ficamos em dúvida agora quando ele diz: “não tenho contas no exterior” e “não temo nenhum exame dos atos que tomei na vida pública”. Julgo que essas dúvidas são infundadas. Dirimi-las é na verdade simples, bastando um pouquinho da boa vontade.
Senão vejamos. Na conversa com a esposa ele diz que está paranoico, em pânico, que vê inimigos escondidos dentro dos celulares. Encontra-se, portanto, em um estado de consciência visivelmente alterado. Além disso, o caso se limita à vida privada. Na vida pública, é outra coisa. Ele nada tem para recear. Por isso afirma que não teme nenhum exame dos atos que tomou na vida pública.
Quanto às “contas na Suíça”, isso parece ainda mais simples de elucidar sem sombra de contradição: ele não disse para a esposa que tinha contas na Suíça, mas sim apenas “uma conta”. Há uma diferença enorme. O Dr. Bethlem não mente, e aqui estamos examinando tudo de forma hipotética, é claro, se realmente existisse alguma conta na Suíça. Porque na nota ele apenas desmente que tenha “contas no exterior”, ou seja, situação plural e não singular. Mas tudo, a bem da verdade, parece derivar de uma mera mentira inventada pelo Dr. Bethlem para a ex. E ele já não havia mentido para ela quando manteve por um ano e meio um caso extraconjugal? Como dito antes, a “loucura a dois” é comum na paranoia.
Seja como for, é curiosa a tentativa dele ao longo de alguns minutos de conversa para convencê-la de que tem uma conta na Suíça (como só é apresentada uma parte do áudio, ficamos sem saber se o assunto, irrelevante e chato, típica picuinhas de ex-casais, segue ainda por muito tempo). É quase certo que o caso é de alucinação. Ninguém entenderia que um homem, cuja mulher o ameaça de denunciar por enriquecimento ilícito, tente convencer a própria de que tem realmente uma conta na Suíça. Só se não estiver em seu juízo normal.
Vanessa – Eu disse isso?
Bethlem – Disse e “vai ter que colocar no papel”. Eu falei: “Vanessa, no papel eu não vou colocar porque não há condições de colocar isso no papel. Eu assinar isso significa que vou fazer a confissão de um crime, que eu não fazer nunca”. Aí você virou e falou o seguinte: “Não, você vai assinar o papel, você sabe por quê?… porque eu tenho certeza, crime por crime, eu tenho certeza que muita gente ia gostar de saber que você tem uma conta na Suíça”.
Vanessa – Rodrigo, como é que eu posso ter dito uma coisa dessas. Eu não teria nem como provar que você tem uma conta na Suíça.
Bethlem – Então, Vanessa, eu tive… eu tive uma ilusão…
Vanessa – Só um minutinho…
Bethlem – Então, Vanessa…
Vanessa – O que que eu, Vanessa, sei de conta na Suíça, pra provar que você tem uma conta na Suíça? Me diga.
Bethlem – Você está careca de saber que fui à Suíça para abrir uma conta lá.
Vanessa – Não, só me diga uma coisa…
Bethlem – Não seja hipócrita…
Nessa parte do diálogo, é interessante observar que o doutor Bethlem chega até a ter um fugaz lampejo de consciência do seu delírio ao alegar: “Então, Vanessa, eu tive… eu tive uma ilusão…”. Por fim, como acontece geralmente quando o médico é o ex-esposa, o doutor perde a paciência é esquece o método do “choque de realidade” empregando diretamente o método do “choque de ordem”. Vamos repetir toda a passagem porque ela é importante para o diagnóstico final:
Bethlem – Você está careca de saber que fui à Suíça para abrir uma conta lá.
Vanessa – Não, só me diga uma coisa…
Bethlem – Não seja hipócrita…
Agora vem a nota pública do deputado Rodrigo Bethlem que desmente de forma cabal aquilo que o Dr. Rodrigo Bethlem disse em conversa privada:
“2. Toda a minha vida pública foi pautada pelo respeito às leis e pela transparência na condução de minhas atividades e, sendo assim, repudio essa irresponsável tentativa de macular a minha imagem.”
Como foi o próprio Bethlem que forçou a esposa a aceitar a existência de uma conta por ele aberta na Suíça ― princípio de realidade ―, parece que a “irresponsável tentativa de macular a minha imagem”, foi obra do próprio deputado. Eu não me arriscaria a assinar o diagnóstico de grave enfermidade psicopatológica, já que isso seria exercício ilegal da medicina. E qualquer exercício, legal ou ilegal, é cansativo. Mas ao longo do diálogo qualquer um pode notar que ele confessa padecer de paranoia, pânicos, terrores e até fala baixo quando não tem ninguém por perto. É verdade que ele diz que não é débil mental…
Por fim, é preciso tirar as conclusões óbvias desse assunto, e a primeira coisa, é não esquecer que uma coisa é uma coisa outra coisa é outra coisa. Pelo contexto da conversa é óbvio que o Dr. Bethlem na época sofria de graves transtornos, que ele mesmo diagnosticou como paranoia e fobia. Natural, portanto, que em meio à grave síndrome de pânico inventasse, e até tentasse forçar a ex-esposa a acreditar, que possuía uma conta na Suíça. E que era médico alienista. Aqui entra também uma cumplicidade associado à conhecida Síndrome de Estocolmo descoberta pelo psicólogo Nils Bejerot. No caso, Betlhelem, sentindo-se perseguido como deputado, desenvolveu uma identificação com os seus perseguidores, os caras que transformam um telefone em autofalante, e acabou acreditando que ele mesmo tinha praticado, e continuava praticando, crimes contra o interesse público. Inventou em sua perturbação, e severa anomalia psíquica, a ideia de que desviava fundos públicos, que recebia de convênios e lanches. Todo esse mundo fictício ele tentou impor à ex-esposa, à época tão senhora de suas faculdades mentais que em nenhum momento deu fé ao fato. Tentou inclusive, sem êxito, chama-lo à razão.
Contudo, o tempo passa. E as pessoas mudam. Com o decorrer de um ano ou dois, a situação inverteu-se: o médico foi aos poucos recuperando sua sanidade. Descobriu que não era médico, mas apenas deputado, ex-secretário de desenvolvimento, etc. Já sua esposa, antes tão lúcida, foi (quem está livre disso com tanto barulho na vida moderna?) vitimada por “grave confusão mental, que resultou em três tentativas de suicídio. A última há poucos dias.” Exatamente quando o deputado recuperava sua lucidez, a esposa caiu enferma. Não existe nada mais corriqueiro que isso: quando num casal (junto ou desquitado) um dos parceiros adentra o limbo da alienação mental, geralmente o outro mantém heroicamente a perfeita sanidade. Mas, logo que o ente alienado se regenera, a parte que suportou todo o peso da situação, desaba. Foi o que aconteceu a ex-esposa, do ex-médico, e ex-secretário Rodrigo Bethlem.
Aliás, afora os perseguidores em período eleitoral, gente perversa, os próprios valores que o deputado cita o tempo todo na conversa (R$ 65 mil, R$ 70 mil e fala até em R$ 100 mil mensais) já poderiam acender o sinal vermelho sobre sua integridade intelectual à época das conversas gravadas. São números inflacionados por uma imaginação exaltada.
Com isso, é forçoso concluir que se alguém deveria ser punido, não é o atual deputado mas o antigo médico. Deve ser pedida a cassação não do deputado Rodrigo Bethlem, que é honesto, sempre teve comprometimento com alguma coisa pública (lanche, fonte de receita, convênio, etc.), mas sim a do Dr. Rodrigo Bethlem, que na sua falta de ética e métodos violentos, chega a chamar sua paciente de hipócrita por não aceitar, ela se alienou da realidade, que ele tem uma conta na Suíça. Na sua agressividade, se bem que isso correu depois de perder toda a paciência, o alienista chega a dizer:
Bethlem – Você está careca de saber que fui à Suíça para abrir uma conta lá.
Vanessa – Não, só me diga uma coisa…
Bethlem – Não seja hipócrita…
Acontece que como o Dr. Bethlem foi fruto de uma paranoia hoje já superada, estando o individual inteiramente senhor de si, e tendo recuperado sua identidade real de honesto e honrado deputado comprometido com a coisa pública, não há de se falar em punição retrospectiva de um ser que apenas existiu em uma imaginação delirante. E apenas no momento da folie à deux e da síndrome de Estocolmo, quando fora dos encontros casuais com a esposa, cumpria com brilhantismo suas funções sem qualquer desvio. Por outro lado, não haverá que averiguar eventual responsabilidade da ex-consorte, visto que se fez o que fez (isto é, entregou as gravações) o fez em momento de confusão mental.
Na sua atual campanha para reeleição como deputado federal pelo PMDB, Rodrigo Bethlem defende no Youtube a internação involuntária de viciados em crack, é contra a legalização da maconha, aprova a redução da maioridade penal para 16 anos, tudo isso ele chama de fazer a coisa certa. Ele diz com convicção que prefere se indispor com a opinião pública do que não fazer a coisa certa apenas para agradar.
A única coisa certa, para usar o slogan da campanha do deputado, que ainda poderia suscitar dúvidas é o fato de o deputado, entre 2011 a 2012, ter sido Secretário de Assistência Social da Prefeitura do Rio de Janeiro, e, em seguida, até recentemente, Secretário de Governo e que, portanto, tenha gozado por muito tempo da confiança do próprio prefeito Eduardo Paes. Não sei se pode falar em “braço direito”, mas secretário de governo deve ser bem próximo ao governo, que nesse caso é o prefeito. Como Eduardo Paes não notou as flutuações de humor de seu secretário? Ao menos, na época em que parece que houve a crise paranoica, durante sua gestão como secretário de assistência social? Bem, primeiro o prefeito é formado em direito pela PUC-RIO, e não tem que ter a argúcia de um alienista machadiano para detectar manias e neurastenias agudas de terceiros. Depois, o próprio envolvimento do prefeito com o Porto Maravilha (“um grandioso projeto de revitalização”), e tantas outras coisas para fazer (pobres para despejar, elevados para por abaixo, favelas para limpar do Google Maps, etc., etc.) numa cidade maravilhosa tão grande, não podia deixar espaço para essa supervisão. O ideal seria a criação de uma Secretaria de Acompanhamento Psicossocial dos Secretários da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro. Isso com certeza reduziria o número de políticos que saem por ai inventando que têm contas na Suíça, que desviam dinheiro público, que recebem mesadas de contratos facilitados, que são amigos de donos de Ongs fornecedoras lanche, etc. A saúde da imagem pública do Rio de Janeiro agradeceria. Fica o conselho.
*Bajonas Britto é doutor em Filosofia, duas vezes premiado pelo Ministério da Cultura por seus ensaios sobre o pensamento social e cultura no Brasil, professor universitário e escritor
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