Sylvio Costa
"No segundo turno, eles queriam de todas as maneiras achar alguma coisa. Passou o segundo turno, eles esfriaram". O autor das palavras entre aspas é o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), sub-relator e um dos mais atuantes membros da CPI dos Sanguessugas. "Eles", no caso, são o PSDB e o PFL. O que eles queriam achar? Qualquer coisa, no rastro da investigação do dossiê Vedoin e da máfia das ambulâncias, que pudesse dificultar a reeleição de Lula.
Confirmada a vitória do presidente, por vontade de mais de 60% dos eleitores e com uma vantagem superior a 20 milhões de votos sobre seu adversário, os grandes partidos de oposição já estão em outra. Não se deixe impressionar, leitor ou leitora, com declarações recentes de líderes oposicionistas prometendo "oposição dura e enérgica", "oposição sem tréguas" ou mesmo com a promessa feita na segunda-feira (30) pelo ex-presidente Fernando Henrique de continuar "dando trabalho ao Lula".
"O mais importante não é o que eles dizem que vão fazer, é o que eles efetivamente fazem", observa o cientista político Rogério Schmitt, da Tendências Consultoria, para quem agora "o clima será mais de cooperação do que de conflito". Paulo Kramer, também cientista político e articulista do Congresso em Foco, reforça: "A oposição, neste momento, não quer balançar o barco. Não se deve esperar adesismo nem que a oposição jogará bóia pra afogado se o governo se ver novamente em dificuldades. Mas os oposicionistas não vão querer guerra".
Como você verá a seguir, essa é apenas uma das mudanças que o segundo mandato de Lula trará. Abaixo, estão listadas ainda as incógnitas que os próximos quatro anos podem reservar e também aquilo que dificilmente mudará.
O QUE DEVE MUDAR
Retomada da agenda legislativa
Faz quase dois anos que o Congresso vive um período de anormalidade legislativa. Primeiro, foi a atrapalhada gestão do deputado Severino Cavalcante (PP-PE) como presidente da Câmara, a partir de fevereiro de 2005. Meses depois, a deflagração do escândalo do mensalão. Finalmente, já em 2006, os casos dos sanguessugas e do dossiê Vedoin. Durante todo esse tempo, o Parlamento esteve mais absorvido por CPIs e denúncias cabeludas do que pela discussão e aprovação de matérias importantes.
Há fortes sinais de que as coisas vão se modificar. Considerando o clima que vai tomando conta do Congresso, é possível que os primeiros efeitos dessa transformação já se façam sentir neste final de legislatura. Aumentam, assim, as chances de aprovação ainda neste ano de matérias como a Lei Geral da Micro e Pequena Empresa e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), temas para os quais Lula pediu atenção especial em pronunciamento feito ontem à noite em cadeia de rádio e TV (leia mais).
As questões mais polêmicas, no entanto, serão enfrentadas a partir de 2007. Entre elas, as reformas de sempre (política, tributária, previdenciária e trabalhista) e a revisão do prazo de vigência da CPMF e da Desvinculação dos Recursos da União (DRU), que permite ao governo desvincular 20% da receita dos tributos federais e ter liberdade para gastar esse dinheiro. Parada técnica: a tal DRU representa uma nota pretíssima – perto de R$ 80 bilhões só em 2007. Continuemos. Tanto a CPMF quanto a DRU perderão a validade no final do ano que vem. Para serem mantidas, é necessário aprovar emenda constitucional, que exige o quorum qualificado de três quintos dos deputados e dos senadores.
Menos PT no governo
Onze em cada dez analistas políticos apostam que o PT terá juízo suficiente para não repetir o erro do primeiro mandato, quando concentrou os poderes do governo em suas mãos e ofereceu aos partidos aliados uma discreta participação na máquina federal. O fenômeno encontrou uma expressão que se tornou clássica na boca do autor da denúncia do mensalão, o deputado cassado Roberto Jefferson (PTB-RJ). Segundo ele, o PT optou por monopolizar os principais cargos e as grandes decisões e condenar os aliados à condição de integrantes de um "exército de mercenários", mantido à custa do mensalão e de favores clientelistas ou assistencialistas.
No novo cenário, o PMDB, que elegeu sete governadores, a maior bancada da Câmara (89 deputados) e está em vias de cooptar senadores que lhe garantirão a bancada mais numerosa no Senado, deverá ser, dos partidos aliados, aquele com o maior quinhão de poder no segundo governo Lula. Espera-se, ainda, uma posição de maior relevância para o PSB (que aumentou a bancada no Congresso e elegeu três governadores) e um ministério com mais nomes apartidários e de peso social significativo, além da garantia às demais legendas governistas – PP, PTB, PL, PCdoB e PRB – de espaço proporcional à força que elas terão no novo Congresso.
Maior ênfase no crescimento
Não são meramente retóricos os compromissos e afirmações que vêm sendo reiterados por Lula e seus principais auxiliares quanto ao desejo de imprimir ao país novo ritmo econômico nos próximos anos.
Ninguém se atreve a endossar a previsão oficial de que o governo Lula será capaz de fazer o país crescer em média 5% ao ano até 2010. A estimativa, que representa o dobro da média de crescimento alcançada nos últimos 12 anos, é considerada otimista, embora não seja impossível de atingir. Para se concretizar, porém, ela depende em primeiro lugar da redução dos juros, que por sua vez deve ser acompanhada do ajuste das contas públicas, de modo a não ameaçar o controle da inflação. Em segundo lugar, de reformas microeconômicas às quais a base governista jamais deu grande atenção durante o primeiro mandato.
De qualquer maneira, a maioria dos analistas acredita que, sobretudo em 2007 e 2008, é muito provável que o governo consiga alcançar taxas de crescimento superiores aos índices medíocres obtidos nos oito anos de FHC e quatro de Lula.
A geografia do PT que manda
No primeiro governo, especialmente entre 2003 e 2005, os então ministros José Dirceu e Antonio Palocci, ambos paulistas, reinaram absolutos. No segundo, espera-se uma influência maior de quadros petistas originários de outros estados.
De acordo com as especulações em curso, dois deles teriam grandes chances de se tornar ministros: o prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel; e o governador do Acre, Jorge Viana, que ficará sem mandato a partir de 1º de janeiro. Outros, já ministros hoje, tendem a desempenhar papel de destaque no segundo mandato: a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Roussef, mineira de nascimento e gaúcha por adoção; o gaúcho Tarso Genro; e o mineiro Luís Dulci, secretário-geral da Presidência da República, cotado para assumir a presidência nacional do PT.
Finalmente, os governadores eleitos da Bahia, Jaques Wagner, e do Sergipe, Marcelo Déda, com os quais Lula gosta de se aconselhar, devem ser ouvidos na formação do ministério e nas decisões mais importantes a serem tomadas durante o segundo mandato.
Não se imagine, contudo, que o PT paulista será colocado para escanteio. Seu peso relativo na administração federal deve cair, mas Dirceu continuará influindo nos bastidores; Palocci, eleito para a Câmara dos Deputados, permanecerá em cena, embora às voltas com processos que já levaram o Ministério Público a pedir até sua prisão; o senador Aloizio Mercadante deve manter a condição de um dos principais porta-vozes do governo no Congresso; e acredita-se na maior visibilidade nacional da ex-prefeita Marta Suplicy, que, na bolsa de apostas, é cotada inclusive para assumir um ministério.
O QUE NÃO DEVE MUDAR
As linhas gerais da política econômica
Fim da "era Palocci", como chegou a anunciar o ministro das Relações Institucionais, Tarso Genro? Não bastasse a desautorização pública de Lula, tal prognóstico é absolutamente descartado pelos analistas. Permaneça ou não o economista Guido Mantega no Ministério da Fazenda, não há quem coloque em dúvida que o governo continuará fiel ao tripé que desde a era FHC forma o eixo central da política econômica: a busca de superávits fiscais, câmbio flutuante e o regime de metas da inflação.
O núcleo governista deverá resistir às pressões de grupos sociais organizados e de setores do PT e da esquerda para afrouxar as políticas monetária e fiscal na marra. Isto é, sem o correspondente ajuste das finanças públicas, o que poderia pôr em risco o controle da inflação. O que significa dizer que o Banco Central dificilmente abandonará o conservadorismo com que tem manejado as taxas de juros.
Quedas espetaculares dos juros em curto prazo são vistas, assim, como improváveis. Os juros só cairão (ou o real se desvalorizará em relação ao dólar, para felicidade dos exportadores) à medida em que não ameacem as metas inflacionárias.
Ressalte-se que essa estratégia é combatida por vários ministros e líderes petistas, que, contrariando a ortodoxia vigente, vêem na redução dos juros – principal despesa do governo federal – o caminho para cortar gastos e possibilitar a formação de poupança destinada a financiar investimentos sociais mais significativos. Nesse embate, contudo, Lula não pára de demonstrar sua determinação de insistir na rota que o tornou confiável aos olhos do mercado financeiro e da comunidade econômica internacional.
Bolsa Família e programas sociais
Se não está disposto a cometer ousadias, Lula e seus principais auxiliares estão determinados a manter os programas sociais que tiveram peso decisivo na reeleição do presidente. O Bolsa Família, claro, é o mais conhecido deles. Mas também continuarão recebendo atenção prioritária outros programas de grande impacto, embora menos lembrados, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o Universidade para Todos (Pro-uni).
A vontade de Lula e da cúpula petista é de aumentar os recursos destinados a essas ações e a outras que possam resultar em melhora da distribuição da renda nacional. Para se confirmar, no entanto, tal ampliação depende do ajuste das contas públicas, questão de equacionamento sempre complexo.
Base no Congresso
O governo deverá manter maioria na Câmara e continuará tendo maiores dificuldades no Senado, onde a oposição saiu ligeiramente mais forte das urnas. Ou seja, a situação não irá se alterar significativamente em relação ao quadro de hoje, a não ser por um aspecto. Fortalecido pela votação recorde e pela eleição de governadores que em sua maioria são seus aliados (leia mais), Lula inicia o segundo governo com considerável cacife.
É o que Paulo Kramer chama de "fundamentos políticos". "Da mesma maneira que existem os chamados fundamentos econômicos, existem os fundamentos políticos, que são passíveis de quantificação e que envolvem essas questões todas, como bancadas partidárias, governadores aliados e resultados eleitorais", explica o cientista político, para concluir que esses fundamentos apontam para uma base parlamentar bastante favorável ao governo.
AS GRANDES INCÓGNITAS
Os rumos das investigações
O PFL divulgou nota ontem (leia mais) que, nas entrelinhas, sugeria que não será do Congresso a responsabilidade de investigar a participação do PT e de Lula no caso do dossiê Vedoin. "Caberá à Justiça eleitoral, no âmbito do estado de direito, sem qualquer politização, decidir sobre processos em andamento", disse a nota, assinada pelo presidente nacional do partido, senador Jorge Bornhausen (SC).
É uma sinalização de que o Parlamento deve cuidar mais de temas legislativos do que da investigação de escândalos no início do governo Lula. É certo que a CPI dos Sanguessugas encerrará seus trabalhos neste ano. Não se esperem da comissão, aliás, grandes revelações sobre o dossiê. A tendência é que a CPI acompanhe o trabalho desenvolvido nessa área pela Polícia Federal, pelo Ministério Público e pela Justiça Federal, tarefa para a qual está prestes a ser oficializada a designação dos deputados Gabeira e Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM).
Isso não elimina inteiramente, contudo, a possibilidade de surgimento de fatos novos, que voltem a colocar – seja por causa do dossiê, seja por outras razões – o governo Lula e o PT na berlinda. "Não vou apostar corrida com a Polícia Federal", afirma Gabeira, "mas acho possível avançar nas investigações. Se o PFL e o PSDB não querem fazer mais as investigações, eu faço".
Fica aberto, portanto, o espaço para o imponderável bater à porta. Seja como for, no horizonte que se vislumbra hoje, soa improvável uma ofensiva que tenha como objetivo desalojar Lula do poder. Tal expectativa está relacionada com o novo comportamento já esboçado pela oposição.
"Para o bem ou para o mal", afirma Rogério Schmitt, "o que a oposição está pensando é que Lula será presidente até 2010. E o interesse em adotar uma linha mais moderada tem a ver em parte com o fato de Lula não ter herdeiro político. Dificilmente, o presidente encontrará no PT um candidato que possa disputar sua sucessão com a força eleitoral que ele tem. Nesse sentido, a chance de o PSDB voltar ao poder daqui a quatro anos é muito grande". Paulo Kramer completa, lembrando que "Lula voltou muito mais forte" em razão da sua excelente votação.
Um cenário, enfim, em que à oposição não interessa criar dificuldades que lhe possam trazer impacto eleitoral negativo ou que compliquem as coisas para o governo a ser empossado em 2011.
O futuro das reformas
Lula assumiu o compromisso de enviar ao Congresso uma proposta de reforma política logo após ser reempossado. Petistas influentes como o governador eleito Jaques Wagner defendem que ela se concentre em quatro temas: a fidelidade partidária (dificultando a troca de partidos por representantes eleitos), o voto distrital, a instituição da lista partidária (pela qual o partido definiria a ordem dos eleitos para vereador e deputado, cabendo ao eleitor na prática votar apenas na legenda) e o financiamento público de campanhas.
São medidas polêmicas, que, em pelo menos dois casos (voto distrital e lista partidária), enfrentam fortes críticas até mesmo de parlamentares governistas. Rogério Schmitt considera que seria "um equívoco" iniciar a agenda legislativa de 2007 pela reforma política: "Além de ela conspirar contra o corporativismo da classe política, que não quer mudar as regras pelas quais foi eleita, não há consenso. A reforma política tem um custo político muito grande, já que tomaria muito tempo, não deixando espaço para a discussão de outras reformas. E não resolve a crise fiscal nem tem impacto econômico".
Para Schmitt, a pauta legislativa deve se concentrar em dois grandes temas: a questão fiscal, envolvendo as reformas tributária, previdenciária e outras mudanças que permitam melhorar a qualidade do gasto público no país; e as reformas microeconômicas, que passam pela parte infraconstitucional da reforma do Judiciário, a desburocratização das regras relativas à abertura e ao funcionamento das empresas e a definição do papel das agências reguladoras.
Também pode ser citada entre as reformas esperadas a trabalhista, que possibilitaria reduzir os encargos tributários sobre a folha salarial. Em todos esses casos, no entanto, há muitas dúvidas sobre o que o futuro nos reserva.
Não há indicações seguras de que o governo encampará a defesa de mudanças vigorosas na legislação previdenciária e trabalhista, propostas que encontram grande simpatia da parte da oposição. Por outro lado, os governadores, que saem das urnas fortalecidos pelo voto popular, sempre fizeram restrições a um item fundamental da reforma tributária – a unificação do ICMS.
Para complicar mais as coisas, setores da oposição são contra a continuidade da CPMF, que engorda anualmente os cofres federais em mais de R$ 30 bilhões e é considerada pelo governo fundamental para garantir o ajuste das contas públicas. "A sociedade não agüenta pagar mais tanto imposto. A reforma tributária talvez não saia nunca. O que temos que fazer é cortar imposto. Temos a oportunidade de começar pela CPMF. Fiz minha campanha toda em cima disso aí", afirma Paulo Bornhausen (PFL), eleito deputado federal mais votado em Santa Catarina.
Cenário externo
No primeiro mandato, como se sabe, Lula conviveu com uma das fases de maior prosperidade mundial da história econômica recente. Foi isso que permitiu ao Brasil alcançar os saldos recordes de exportações tão festejados pelo governo. Também está nesse fato a origem das críticas ao modestíssimo crescimento alcançado desde 2003. No caso, questiona-se por que o país não aproveitou os bons ventos da economia internacional para crescer mais (como lembrou tantas vezes o candidato tucano Geraldo Alckmin, nos últimos dois anos, o crescimento brasileiro só não foi menor do que o de uma nação latino-americana, o Haiti).
Não há previsão de terremotos ou furacões para a economia global nos próximos anos, mas dois fatores podem dificultar as coisas para o governo Lula. O primeiro deles tem a ver com uma das palavras preferidas dos economistas, operadores do mercado financeiro e jornalistas econômicos: a "volatilidade" das condições econômicas e dos humores dos investidores, que podem mudar a qualquer momento. O que pode ser dito de outra forma: nesse mundo aí, terremotos e furacões raramente mandam aviso prévio.
O segundo é que não se projeta para os próximos anos a repetição do extraordinário ciclo de crescimento mundial verificado até agora na presente década. Dessa forma, de um lado, o governo Lula terá que ser mais competente do que foi no primeiro mandato para entregar o desenvolvimento que prometeu. Do outro, não está livre dos riscos dos efeitos perversos que uma eventual deterioração do ambiente econômico internacional poderia trazer.
Articulação política
No primeiro mandato de Lula, a desastrosa articulação política do governo resultou no mensalão, no caso dos sanguessugas (cuja origem, segundo o relatório preliminar da CPI, remonta à era FHC) e numa sucessão fantástica de trapalhadas. A mais notória delas, em fevereiro de 2005, quando o PT teve dois candidatos à presidência da Câmara dos Deputados e terminou facilitando a eleição de Severino Cavalcante.
Acredita-se que o governo aprendeu a lição e não lançará mão, de novo, de mensalinhos ou mensalões. Mas são imensas as dúvidas sobre a condução da articulação política nos próximos anos. Algumas perguntas que só o tempo permitirá responder: quem exercerá esse papel no lugar de José Dirceu? Como se sairá na difícil missão de coordenar uma coalizão partidária que deverá incluir nada menos que oito legendas (PMDB, PT, PSB, PP, PTB, PL, PCdoB e PRB)?
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