André Rehbein-Sathler e Renato Ferreir*
Na década de 1970, a ditadura vendeu ao povo que o Brasil experimentava o milagre de taxas de crescimento recorde. A renda total do trabalho, contudo, perdia participação na renda nacional. Diferente daquela eternizada por Cristo, a multiplicação de pães e peixes do milagre brasileiro foi para poucos.
Um dos capitães daquele fenômeno, Delfim Netto, defendia-se de críticas com uma frase que ficou famosa: é preciso primeiro que o bolo cresça, para depois ser repartido. Talvez tenha se inspirado na tradicional festa das bruxas, quando se oferece a opção: doces ou travessuras? Delfim oferecia doces (bolo), mas entregava travessuras – a continuidade do padrão concentrador de renda vigente no país desde sempre.
O assunto retorna à mesa, embolorado e contaminado por todo tipo de aberrações da economia de botequim, inclusive a de políticos em cargos importantes que afirmam que a não-reforma da Previdência irá tirar imediatamente merenda da boca das crianças da escola pública. Ganha contornos importantes quando se sabe que a escolha do próximo presidente passa pela opção por uma alternativa de caminho em termos da distribuição de renda, entre outras grandes escolhas a regerem o contrato firmado entre essa gente chamada de brasileiros.
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Os partidos sabem disso e se movimentam para apresentar suas propostas. Como o PSDB, que acabou de promulgar seu manifesto Gente em primeiro lugar: o Brasil que queremos, no qual consegue fazer jus à sua reputação e tentar equilibrar-se entre um choque de capitalismo e políticas de redução da desigualdade. É bom sonhar, mas a realidade impõe sua lucidez.
O matemático russo Andrei Andreyevich Markov formulou os processos que viriam a ser conhecidos pelo seu nome – markovianos – que descrevem a dinâmica criada por um certo número de estados que se modificam de acordo com uma determinada regra. A ideia – com aplicações em inúmeros campos, como física, química, computação, estatística, economia, genética, música – é a de que o que é relevante para a posição final dos estados é a regra que rege a sua transformação, e não a posição inicial.
PublicidadeParece complexo, mas fica mais claro a partir de um exemplo literalmente pueril. Imaginemos que os “estados” markovianos sejam João e Maria dividindo doces. A cada rodada, Maria dá a João metade de seus doces, enquanto João dá a Maria um terço dos que possui. Em pouco tempo, João terá muito mais doces do que Maria e isso independe da quantidade de doces sendo distribuídos e também de quantos doces João e Maria tinham inicialmente. A ideia de Markov era demonstrar exatamente que, nesse tipo de dinâmica, a regra de distribuição se torna rapidamente mais relevante que o estado inicial.
Nesse momento, o leitor ansioso pergunta: e o que é que o tal Markov – ou mesmo os prosaicos João e Maria – tem a ver com o manifesto do PSDB em direção à sucessão presidencial do próximo ano? A conexão está justamente na questão da abordagem da desigualdade social brasileira, que, segundo o manifesto, foi “agravada pela herança da ditadura”.
É um argumento comum, como é comum apontar como fonte da nossa desigualdade a herança institucional dos tempos de Brasil Colônia. Em termos markovianos, equivale a dizer que o problema são as condições iniciais dos estados, e não as regras de distribuição.
Irônica, ou perversamente, Delfim propunha chegar-se a uma condição inicial melhor ao final de um processo de acúmulo, ou, em termos da piadinha: a volta dos que não foram. A ditadura que os tucanos atacam como tendo deixado uma herança perversa na prática fazia o mesmo que eles agora se propõem a fazer: melhorar as condições por meio de um etéreo choque de capitalismo, para tentar avançar com os programas sociais.
A desigualdade em si aparece de maneira aguada, lateral, como se fosse um elemento da paisagem, uma espécie de cacto político no fundo do quadro no qual se sublinham os oásis. Prometem doces, escondem travessuras.
Desde a ditadura, pelo menos, os brasileiros vivem sob uma economia de mercado e com considerável intervenção estatal. Houve, então, várias rodadas de distribuição dos doces entre os Joões e as Marias do nosso país, seja no mercado, seja por meio da pesada carga tributária e das crescentes despesas estatais.
É bastante incomum, pelo menos dos anos 80 pra cá, encontrar um João que não tenha repartido doces por viver apenas da economia de subsistência ou uma privilegiada Maria que não tenha tido parte dos seus doces dragada pelos impostos nossos de cada dia e tenha recebido mais ou menos doces em razão de alguma política estatal.
O leitor que não superou sua ansiedade então dispara: isso só prova que o tal Markov estava errado, pois os privilegiados de hoje são os mesmos das condições iniciais, sejam as do fim da ditadura ou até mesmo as do Brasil Colônia. Afinal, a nossa herança social desigual segue mais viva do que nunca, com descendentes de donatários das Capitanias Hereditárias compondo as elites do Brasil do século XXI e descendentes de quilombolas abaixo da linha da pobreza até hoje.
No entanto, o questionamento que se deve fazer, diante dessa perspicaz constatação, é: as desigualdades brasileiras se mantiveram por causa das condições iniciais ou em razão das regras de distribuição? A desigualdade social é algo que ainda não se pôde mudar, apesar de nossos esforços, ou é algo que nós deliberadamente (embora nem sempre conscientemente) mantivemos?
Para responder perturbadoramente a essa questão, vamos pensar sobre as heranças. Não as heranças sociais ou institucionais da ditadura ou da colonização, mas a comum, aquela da sucessão patrimonial do Código Civil. O Brasil é um dos países que adota as menores alíquotas na tributação das heranças, em torno de 4% (a alíquota varia por Estado, com alíquota máxima de 8%). Os Estados Unidos se aproximam dos 30%, a Inglaterra chega a quase 40% e o Chile pratica uma alíquota que é o triplo da brasileira (13%).
A tributação das heranças é um bom exemplo porque mostra que, ao definir quanto do patrimônio de alguém que falece fica com familiares ou pessoas escolhidas pelo falecido e quanto é distribuído socialmente, nós brasileiros temos adotado regras de distribuição bastante tímidas. Temos defendido, conscientemente ou não, que cerca de 96% desse patrimônio não seja distribuído socialmente, independentemente do valor dos bens.
Nas nossas regras de distribuição, portanto, consta que mesmo nos casos em que o conjunto de bens deixado pelo falecido é milionário, 96% dele fica com seus familiares ou escolhidos – pessoas certamente já beneficiadas anteriormente pelo patrimônio do de cujus – e só 4% é distribuído conforme critérios sociais mais amplos.
Isso nos leva a cogitar que talvez o Brasil seja desigual por nossa culpa mesmo, ou porque não fizemos o que poderíamos ter feito, no que diz respeito a regras de distribuição dos recursos. Mais provavelmente, porque fomos muito condescendentes com a transformação do poder político em poder econômico e vice-versa, o que faz com que quem já tem muitos doces defina as regras que distribuem os doces…
Enfim, talvez uma abordagem mais crítica e ousada da questão da desigualdade social, enfrentando, por exemplo, a regressividade de nosso sistema tributário, nos ajude a encontrar algum caminho que realmente coloque a gente brasileira em primeiro lugar. Se estamos numa democracia, as regras de distribuição estão nas nossas mãos e, como ensina Markov, são elas, e não o nosso ponto de partida, que definem o futuro que podemos alcançar.
Deixar de lado a postura lamurienta e combater a nossa herança por uma tributação mais justa das heranças pode ser um começo.
*André Rehbein-Sathler é professor do mestrado em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados e Renato Ferreira é doutorando em Ciência Política pela UERJ
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