Dizem que toda conquista é mais saborosa depois do sacrifício. A base aliada no Senado que o diga. Após a ameaça das emendas que, articuladas pela oposição junto a “dissidentes” governistas, inviabilizariam a aprovação da PEC da DRU ainda neste ano – impedindo o livre uso, por parte do governo, de 20% do orçamento até 2015 –, o governo pôde respirar pelo menos até a próxima semana, quando a matéria será apreciada em segundo turno. Condicionada à apreciação de outra matéria onerosa para o governo (a regulamentação da Emenda 29, que fixa percentuais mínimos de investimento na saúde e foi aprovada sem ônus extra para a União), a PEC deve ter sua tramitação concluída até do próximo dia 20. Mas, como efeito colateral, revolveu uma ferida que, contrapondo lideranças importantes na Casa, expôs o “mundo real” de uma ampla e relativa maioria para a presidenta Dilma Rousseff.
Senado aprova prorrogação da DRU em primeiro turno
A imposição das vontades do governo ao Parlamento culminou em uma cena de irritação aguda do líder do DEM no Senado, Demóstenes Torres (GO), durante a votação do Código Florestal, na última terça-feira (6). A raiva oposicionista se desdobrou na rara reação de transtorno protagonizada pelo presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP). Em meio ao bate-boca com Demóstenes, Sarney abandonou a Mesa Diretora, desceu ao nível inferior do plenário e, dedo em riste e mesmo aos 81 anos, quase partiu para o confronto físico. Teve de ser contido pelo senador Fernando Collor (PTB-AL).
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O entrevero se explica na manobra de plenário que, ensaiada com os líderes da base, serviu para inverter a pauta de votações e colocar a prorrogação da Desvinculação das Receitas da União na frente da regulamentação da Emenda 29, contrariando acordo feito naquela semana com a oposição. A “pressa” de Sarney se justificava aos olhos da base: a matéria precisava cumprir o prazo de cinco sessões de discussão, e precisava ser antecipada às demais proposições pautadas. Demóstenes não gostou nada do procedimento. Deu-se, então, a troca de “gentilezas”:
“Senhor presidente, mais uma vez fica evidente a falta de compromisso do governo, e de vossa excelência também, me permita. Não há qualquer possibilidade de se fazer entendimento com o governo e com a Mesa desta Casa. Hoje, a presidente [Dilma] disse: ‘nós vamos tratorar’. E é o que está acontecendo. Vossa excelência está rasgando o regimento [interno], rasgando a sua palavra. (…) Não use da minha concordância para determinado procedimento, para vossa excelência e o governo, de maneira torpe, burlar o [acordo] que nós fizemos. Torpe! Não queira me utilizar nesse tipo de… não fiz esse acordo”, vociferou Demóstenes, entre os senadores José Agripino (DEM-RN) e Randolfe Rodrigues (Psol-AP), que apoiavam a intervenção. E, do outro lado (tanto ideológico quanto espacial), observado com apreensão pelos líderes do governo e do PMDB no Senado, respectivamente Romero Jucá (PMDB-RR) e Renan Calheiros (AL).
Durante o corte de imagens feito pela TV Senado entre Sarney e Demóstenes, ouviu-se o soar da campainha, acionada pelo peemedebista quando o oposicionista pronunciou o termo “torpe”. “Eu mando cancelar a palavra torpe da taquigrafia”, rebateu Sarney, já demonstrando sinais de que não se restringiria à reprimenda. Indícios que se confirmaram.
Depois da troca de interpretações sobre o regimento interno e o acerto de procedimento de pauta, Demóstenes, já aos gritos, disse que Sarney já havia aberto caminho para o item até então prioritário, a regulamentação da Emenda 29. “Vossa excelência iniciou a votação e disse que hoje [terça, 6], era o primeiro item da pauta. Honre então que o senhor descumpriu o acordo!”, bradou o parlamentar goiano. Sarney então repetiu a ordem de retirada do termo ofensivo. “Ao presidente compete policiar os trabalhos do plenário”, disse. “Não precisa, pode constar [das notas taquigráficas]!”, treplicou Demóstenes.
O tempo fechou de vez. Consternado, Sarney desceu da espécie de altar que acomoda a Mesa Diretora e se dirigiu a Demóstenes, que ficou impassível diante da aproximação. “Você me deve desculpas! Você me respeite!”, protestou, já fora do enquadramento da TV Senado, o ex-presidente da República, bloqueado por Collor. “Eu ia falar o quê para um homem de homem de 80 anos?”, declarou depois o senador do DEM, que depois se desculpou tanto no microfone do plenário pelo uso da expressão quanto em visita ao gabinete de Sarney– sem, no entanto, recuar do posicionamento.
A temperatura esquentou a partir dos seis minutos e 22 minutos do vídeo abaixo. Confira:
Uso da força
Na última quinta-feira (8), outro episódio marcou a semana e escancarou o alto índice de nervosismo na reta final do ano legislativo. Foi na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CAS), por ocasião da votação do Projeto de lei 122/06, conhecido com Lei Anti-homofobia, que criminaliza qualquer tipo de preconceito contra homossexuais.
A certa altura das discussões, o senador Magno Malta (PR-ES), apoiado por uma claque de jovens religiosos, disse que o projeto criaria um “império gay” se fosse aprovado da forma como está redigido. Bispo da Igreja Universal, Marcelo Crivella (PRB-RJ) apoiava as bravatas do colega capixaba. De outro lado, a relatora da matéria, Marta Suplicy (PT-SP), defendia seu parecer, que estava sob apreciação do colegiado. Marinor Brito (Psol-PA), ao seu estilo incisivo, rebatia as críticas dos opositores da matéria.
Ao passo em que o tempo passava, as discussões se tornavam mais acaloradas, com diversas interrupções de pronunciamento em razão dos protestos na sala lotada de manifestantes – contrários e favoráveis à matéria. Ao final da sessão deliberativa, o presidente da comissão, Paulo Paim (PT-RS), diante da falta de condições para a votação em termos civilizados, pediu para que todos deixassem a sala da comissão “em paz”.
Marinor já ia encerrando sua fala quando o tumulto foi instalado. “O nosso Estado, de acordo com a Constituição, é laico. Isso foi uma conquista, isso não é uma luta entre religiões, porque em todas as religiões tem gente intolerante e gente que defende os direitos humanos. Não adianta tentar mascarar e buscar adeptos proclamando…”, bradou Marinor, entre vaias e aplausos, interrompida pela algazarra e encoberta pelo som da campainha de silêncio, acionada por Paim. Foi quando ela levantou e, inflamada, ordenou:
“Olha, eu estou ouvindo, e eu enxergo. Você me respeite. Eu queria pedir à segurança que retirasse aquele cidadão dali! Você me respeite!”, gritou a senadora, vendo ofensa na ação de um opositor anônimo do projeto, que girava o dedo indicador junto à cabeça, sugerindo a insanidade da parlamentar.
Confira o momento da revolta de Marinor, a partir dos cinco minutos e 26 segundos do vídeo abaixo:
Galhofa do “abestado”
Se no Senado o clima foi tenso, na Câmara ao menos um deputado, especialista que é na matéria, deu humor e leveza ao trato legislativo. Embora em sessão formal de uma comissão temática, Tiririca (PR-SP) não se fez de rogado e, no principal posto de comando colegiado, estreou como se estivesse em suas apresentações na TV Record: com doses generosas de piada e ironia.
Era a estreia de Tiririca, o parlamentar mais votado da atual legislatura (1,3 milhão de votos), na presidência da Comissão de Educação e Cultura da Câmara. Ele, que substituía naquela quinta-feira (8) a presidenta titular Fátima Bezerra (PT-RN), disse ter sentido como “o astro dos astros” no comando dos trabalhos.
Além de falar sobre sua trajetória artística, Tiririca contou piadas, zombou do nome de um dos convidados (Ignácio Kornowski, coordenador do departamento técnico de desenvolvimento da cultura da Confederação Nacional dos Municípios) e deixou no ar que pode continuar na política após a conclusão do mandato. “Eu realmente sei o que um deputado faz. Trabalha muito e produz pouco. O regime da Casa é engessado. Dentro do regime é complicado. Hoje estou dando baile, aprendendo para caramba. Mas foi mais difícil”, declarou o humorista- parlamentar, em alusão a uma de suas frases de campanha (“Você sabe o que faz um deputado federal. Eu também não, mas vote em mim que eu te conto”).