O impacto da medida é estimado em R$ 3 bilhões anuais, tudo o que Levy – e, principalmente, Dilma – não quer em tempos de ajuste fiscal. Como este site mostrou em 26 de março, o socorro a estados e municípios levou à rara situação em que base aliada e oposição se uniram para votar contra o governo. Por se tratar de questões referentes aos redutos eleitorais dos parlamentares, com implicações que vão além das diferenças partidárias, o governo deixa de ter o controle da situação na hora do voto.
Para o senador Walter Pinheiro (PT-BA), um dos senadores que mais têm se manifestado contra os rumos do governo em relação ao pacto federativo, a fidelidade partidária abre espaço para as demandas regionais nesses casos. Questionado pelo Congresso em Foco sobre o tratamento que seu partido dará ao PLC 15/2015, ele foi direto. “Não tem PT. A questão do pacto federativo envolve a participação de cada senador em seu estado. Na bancada do PT, por exemplo, Marta [Suplicy] defende São Paulo. Eu defendo a Bahia. Temos interesses diferentes. Essa é uma matéria em que partido algum, bancada alguma vai centralizar seus membros”, avisou o petista baiano.
Walter Pinheiro faz menção ao início dos debates em plenário a respeito de dois dos itens do pacto federativo há anos discutido – e emperrado – no Senado: além da revisão das dívidas (PLC 15/2015), senadores começaram a deliberar sobre o Projeto de Lei do Senado (PLS) 130/2014, também tramitando em regime de urgência, que convalida os incentivos fiscais concedidos por estados ao setor produtivo – prática que fomenta o que se convencionou chamar de “guerra fiscal”. Mas diante das divergências explicitadas de lado a lado já na fase inicial de discussão de mérito dos projetos – um sinal do tensionamento que vem por aí –, além de contestações regimentais e acusações de quebra de acordo entre as lideranças, a votação foi adiada para depois do feriado da Páscoa.
Tanto um quanto o outro projeto tem tirado o sono do ministro Levy. Na última terça-feira (7), quando debateu com senadores por mais de sete horas na Comissão de Assuntos Econômicos, ele fez um apelo aos governadores: estados não devem se antecipar e convalidar incentivos fiscais antes que sejam unificadas as alíquotas interestaduais do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). No dia seguinte, o ministro já havia recebido um ultimato do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), a respeito da revisão das dívidas estaduais, assegurando que a palavra final sobre o assunto seria dada pelo Congresso – e que se o Planalto quisesse reverter o quase irreversível destino do PLC 15/2015 (a aprovação), que preparasse um plano de ajuste econômico amplo que incluísse, por exemplo, a independência do Banco Central em relação ao Executivo.
Durante a tentativa de discussão dos projetos em plenário, o ex-líder do governo no Senado Romero Jucá (PMDB-RR), um dos principais articuladores do pacto federativo na Casa, defendeu o adiamento sob o argumento de que as divergências poderiam levar à derrubada de ao menos um deles – o da convalidação dos incentivos, de autoria da senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO). Além disso, alertou Jucá, a falta de consenso poderia levar à “ampliação da insegurança jurídica” e prejudicar estados e municípios. O senador defendeu ainda que a convalidação seja encaminhada com a redução e a unificação das alíquotas interestaduais do ICMS.
“É fundamental aprovarmos uma resolução que reduza as alíquotas. Hoje, o que é dado é um incentivo com o recurso de outros estados. É um modelo perverso! Essa questão será resolvida quando nós nivelarmos as alíquotas interestaduais”, discursou Jucá, referindo-se à exigência regimental para a redução das alíquotas – um projeto de resolução do Senado. O senador defende que o plenário aprove a nivelação já nesta semana.
Fator Rio
Em seu périplo pelo Congresso na tentativa de emplacar algum tipo de acordo em nome do ajuste fiscal, Levy levou na última semana à consideração da cúpula do Senado – leia-se, aos caciques do PMDB – uma alternativa à aprovação do recálculo das dívidas. O entendimento, àquela altura negociado com o Rio de Janeiro, consiste em manter o indexador das dívidas durante todo o ano de 2015 e, no ano seguinte, ressarcir os entes federativos com os valores que deixaram de ser calculados. Assim, o governo asseguraria o alcance da meta de superávit (1,2% do Produto Interno Bruto), evitando gastos extras em pleno esforço de ajuste, e adiaria para 2016 o impacto da nova regra.
Na última quarta-feira (1º), o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, resolveu aceitar o acordo proposto pela União. Ele havia conseguido na Justiça a revisão dos débitos do município por meio da aplicação do novo indexador, aprovado pelo Congresso e sancionado (mas ainda não regulamentado) por Dilma em novembro de 2014 – o PLC 15/2015, em resumo, o coloca em vigor. Outrora irredutível, Paes depositou em 24 de março R$ 28 milhões do que acredita ter restado da dívida, e disse que não pagaria o que o governo federal quer. De acordo com suas contas, a capital fluminense devia R$ 300 milhões (R$ 272 milhões anteriormente pagos), montante 20 vezes menor do que a União considera estar pendente, R$ 6 bilhões. Mas, com o acerto, novos depósitos serão feitos em juízo e devolvidos ao Rio em 2016. “Viro credor da União”, resumiu o prefeito.
A proposta de Levy poderia ser estendida a estados e municípios, se assim eles aceitassem. Mas, como lembra Walter Pinheiro, a realidade do Rio – e de São Paulo e outros entes mais ricos da Federação – não é a mesma dos demais estados. “O acordo com o Rio trata da dívida, e não atende à Bahia. O acordo da Bahia tem de ser a convalidação dos benefícios. Portanto, estamos querendo votar primeiro essa questão da convalidação, discutir ICMS, e aí nós votamos a favor. Nós [também] votamos a favor na renegocição das dívidas, não há problema algum. Vai atender ao Rio, mas eu já havia votado a favor. Agora, não dá para nós votarmos a favor nessa questão e não ter, por outro lado, o voto [da bancada] do Rio de Janeiro na convalidação dos benefícios”, disse o petista à reportagem.
Não há a garantia, até o momento, de que o acordo costurado com o Rio seja estendido aos demais 25 estados da Federação, além do Distrito Federal. Pelo contrário. A correlação entre os temas – o indexador das dívidas e a convalidação dos benefícios – aliada às diferenças regionais entre os parlamentares deixa a situação ainda mais fora de controle para o governo. E ainda há um fator determinante: 2016 é ano de eleições municipais, o que aumenta o interesse e a necessidade dos atuais gestores em fazer caixa e chegar ao pleito com orçamento reforçado e contas em dia.
Em entrevista ao Congresso em Foco, o senador fluminense Lindbergh Farias (PT) disse que o Palácio do Planalto perdeu a mão na articulação política em nome de um custo orçamentário que, em sua análise, é “zero”. “Sinceramente, acho que foi primária a reação do governo em relação a isso. O governo errou. O impacto [da renegociação das dívidas] no resultado primário é zero! Esse debate tem que ser bem colocado, porque [o impacto orçamentário] vai na conta dos juros – R$ 2 bilhões que o governo deixa de receber, mas que os estados deixam de pagar. No resultado primário, a soma é zero, mas com um impacto político gigantesco”, lamentou o petista.
Equilíbrio distante
Já em relação à convalidação, a equação é igualmente complexa. Por definição, ela representa a regularização da concessão dos benefícios fiscais às empresas em cada estado, para que elas se consolidem nos respectivos territórios, disso resultando empregos e renda e ajudando no crescimento econômico. Em tese, esse incentivo deve ser unanimemente aprovado pelos estados no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), mas diversas concessões foram dadas à revelia dessa exigência. Resultado: guerra fiscal.
Senadores contrários à convalidação pura e simples, sem a reforma do ICMS, dizem que isso provocaria ainda mais confusão entre os entes, acirrando a guerra fiscal. “Há um consenso em toda a Casa sobre a necessidade de haver a convalidação desses incentivos. Só que, para fazer isso, nós temos de acabar com a guerra fiscal. Se fizermos isso sem votarmos a reforma do ICMS, a consequência é mais guerra fiscal. Eu faço analogia aqui com situações de prefeituras, no passado, que faziam o seguinte: isenção de IPTU [Imposto Predial Territorial Urbano]. Sabe o que acontecia? Cinco anos depois, ninguém mais pagava IPTU à espera de novas isenções”, ponderou Lindbergh em plenário, lembrando que a reforma do ICMS já foi aprovada na Comissão de Assuntos Econômicos.
Tanto ele quanto o oposicionista Aloysio Nunes (PSDB-SP) concordam que a matéria deve ser mais bem discutida a fim de que arestas sejam aparadas. “O projeto traz inovações que permitem a eternização da ‘guerra fiscal’ e que vão inviabilizar qualquer reforma de ICMS no nosso país, na medida em que os estados ficam autorizados a conceder remissão dos créditos oriundos desses incentivos que foram contestados sem prazo. Se um estado concede um incentivo que impacta a receita de outro, a federação está vulnerável”, apontou o tucano.
Não é o que pensam o líder do PMDB, Eunício Oliveira (PMDB-CE), e seu colega José Pimentel (PT-CE), que estão do lado de Walter Pinheiro e da maioria dos representantes de estados com menos orçamento. A concessão de incentivos, diz o senador cearense, é o legítimo exercício dos gestores em “fazer política fiscal” em nome do desenvolvimento de seus estados. Já Pimentel lembrou que a convalidação será apenas retroativa, não considerando futuros incentivos, evitando-se dessa forma mais insegurança jurídica. Para o petista, além de estar em consonância com recentes resoluções do Confaz, o projeto é essencial para promover poder de competitividade para regiões com menos infraestrutura.
Criticando a postura do governo (“Não temos resposta em relação à política decisiva”), Walter Pinheiro sedimentou a certeza de que Dilma não terá vida fácil, daqui em diante, no que tange às pautas do pacto federativo e, consequentemente, ao equilíbrio fiscal. Defendendo a votação do projeto já naquela terça-feira (31), o petista diz que a não convalidação dos incentivos atinge “no fígado” estados nordestinos. “É verdade que a guerra fiscal não favorece ninguém. Mas também deixar como está é simplesmente ameaçar todos esses estados, não bastasse o longo tempo que nós tivemos de baixo investimento em logística na nossa região. Não basta!”, reclamou Walter.