André Sathler Guimarães e Malena Rehbein Rodrigues*
Ninguém reclama do sistema de preços. Há, sim, quem reclame dos preços, sobretudo em tempos de inflação persistente. Mas o sistema de preços, entendido como ambiente viabilizador da valoração dos produtos e das trocas, já se tornou consenso planetário. Apesar de profundamente arraigado na sociedade contemporânea, de modo a praticamente alcançar a invisibilidade – ninguém em seu cotidiano gasta muito tempo a pensar sobre o funcionamento do mercado – o sistema de preços não é natural. É uma instituição, uma invenção humana, um artifício.
Seu caráter artificial remete a uma possibilidade direta – se foi criado pelo homem, pelo homem pode ser manipulado. No caso do sistema de preços, espera-se que a possibilidade da manipulação seja contida, ou pelo menos evitada, pelas curvas anti-gêmeas da oferta e da demanda, oscilando sempre em sentido contrário, contrabalançando-se ad infinitum.
O sistema político, tal qual o sistema de preços, é artificial. O homem o constrói conforme suas possibilidades sociotécnicas, como instância definidora das possibilidades de governança geral dos homens e suas interrelações. Há sistemas políticos simples, como os tribais, nos quais existe apenas uma figura de autoridade, exercida por direito hereditário ou por quem a conquistar pela força. E sistemas complexos, como as modernas democracias representativas, que agregam sistemas eleitorais diversos (voto distrital, voto proporcional, etc.) e configurações complexas de exercício do poder (divisão de poderes, parlamentarismo, presidencialismo, etc.).
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Contudo, tanto nos sistemas simples quanto nos mais avançados, há um elemento que permanece comum: a confiança – o mesmo ingrediente necessário para legitimar o sistema de preços que abre ilustrativamente este artigo. Naquele simples sistema político em que impera a força, vale a confiança do grupo de que ele permanece sendo o mais forte. Quando essa confiança é quebrada, o líder é desafiado a demonstrar que continua sendo o mais forte, enfrentando desafiantes diretos. A mesma lógica do macho-alfa prevalente entre animais gregários. Nos sistemas complexos, a confiança se desloca para o próprio sistema e se mistura à noção weberiana de legitimidade – exerce o poder quem o conquistou dentro das regras e procedimentos do sistema escolhido.
Em tempos normais, o sistema funciona de modo imperceptível (como que naturalmente) e a legitimidade segue inquestionada. Há uma adesão quase natural, um acordo tácito, já que se confia nas regras e agentes sistêmicos. Em momentos de turbulência, as pessoas se lembram da artificialidade do sistema e, por conseguinte, de suas possibilidades manipulatórias.
PublicidadeNo caso recente das eleições brasileiras, no qual assistimos ao exacerbamento da polarização entre PT e PSDB, com o transbordamento da disputa para um verdadeiro vale-tudo nas redes sociais, e até o registro de alguns episódios de enfrentamento no mundo real, o sistema foi colocado em cheque. O comportamento público dos agentes políticos foi lamentável e o baixo nível da campanha eleitoral conseguiu superar o já esperado troca-troca de acusações, comum nos momentos de campanha. Com isso, o sistema político perde aquela sua característica de “instituição” – criação humana para dar conta de alguma necessidade social específica – e assume ares de “organização”- procedimentos adotados pelo meu inimigo para se manter no poder.
Colocar em dúvida o funcionamento das urnas eletrônicas, questionar a idoneidade da Justiça Eleitoral, acusar partidarização de órgãos públicos (como a Polícia Federal, o Ministério Público, etc.), banalizar denúncias e suas investigações por meio de uso político, são vetores de um mesmo fenômeno – a proliferação da desconfiança. A desconfiança traz em si uma semente perversa – a descrença do funcionamento do próprio Estado de Direito. Pois a adesão ao Estado de Direito é fundamentalmente uma questão de confiança. Se desconfio, não fio-junto”(con-fio), então assiste-se a um esgarçamento do tecido social. O bem comum resta apropriado por uma facção (partido político?) e todo o resto é o inimigo. Instaura-se enfim a lógica do confronto direto, que é um jogo onde se há ganhadores têm que existir perdedores, quando o verdadeiro jogo democrático, praticado por meio das instituições, é um jogo de ganha-ganha – todos saem ganhando com o cumprimento e a observância das regras. Aliás, é isso que garante inclusive a existência de conflitos, tão característicos das democracias.
Ao apontar para falhas procedurais no coração do sistema (via fraude das urnas eletrônicas), a desconfiança tem um potencial imensamente danoso, pois não há como o sistema se sustentar com uma fratura em seu âmago. Se a semente cresce e ganha raízes mais fortes, perde-se finalmente a crença nas regras, o que, na prática, significa o “cada um por si e Deus por todos”. O cidadão, já imerso em uma exaustão silenciosa com as múltiplas precariedades de funcionamento do Poder Público (que mostrou, em junho de 2013, como pode deixar de ser silenciosa e se expressar ruidosamente), vê-se confrontado com a validade das regras do jogo eleitoral, e, portanto, de escolha dos agentes que estarão à frente daquele mesmo criticado Poder Público. Se não se confia nas regras do sistema por que cumpri-las? Quando se chega neste ponto, volta a valer, então, a prevalência de quem grita mais alto. A força. A violência. A manipulação para construção de consensos artificiais com pretensão de verdade, gerando legitimidades ocas.
Obviamente que aqui não se está falando de qualquer grau de desconfiança, considerada mesmo saudável para a democracia, como bem aponta a americana Pipa Norris, uma das maiores estudiosas da confiança na contemporaneidade. Pois imagina-se que um certo grau de desconfiança seja reflexo do que Norris chama de cidadão crítico, aquele se informa mais e exige mais também, o que gera possivelmente também maior esforço governamental.
É certo que a situação institucional brasileira ainda é muito distante da dos Estados falidos (conceitualmente aqueles cujo governo é ineficaz em manter a ordem) , porém cumpre uma observância vigilante, pois, toda construção humana, por mais portentosa que seja, pode desmoronar com um clique. Vale aqui lembrar das últimas eleições na Venezuela (as duas últimas particularmente), não para discussão do mérito sobre aquele país ser ou não uma democracia e de que tipo, mas sim para exemplificar o que pode se tornar um ambiente de desconfiança generalizada. Todos devem lembrar que foram chamados observadores eleitorais para que as autoridades venezuelanas pudessem mostrar a todos como seu sistema de votação (lá, além das urnas eletrônicas os votos são impressos para verificação por amostragem, a posteriori) é confiável. Para o mundo e para os venezuelanos, estes sim historicamente um povo polarizado. O sistema de votação é, de fato, muito bom e robusto contra fraudes. Por que, então, tanto esforço para provar algo facilmente demonstrável para o mundo e para os próprios cidadãos? Justamente porque o sistema político-social daquele país chegou a tal ponto de esgarçamento que a desconfiança é geral. Com cada lado defendendo o seu. A violência recente do país tem, entre seus diversos e complexos motivos, uma boa dose de tudo isso.
Para além dos radicalismos e do espraiamento da semente perversa da desconfiança, há que se buscar agora a reafirmação das instituições (sistema eleitoral, funcionamento dos órgãos públicos independentes, etc) e, com isso, o aprofundamento da consolidação da experiência democrática, que alcançou sua sétima eleição direta para Presidente da República sem maiores intercorrências. Felizmente a democracia brasileira comporta o sistema eleitoral proporcional para o Legislativo não por acaso, mas porque justamente preza pela ampliação da diversidade dos mais diversos grupos sociais. Não se vive aqui uma democracia (ou ditadura!) da maioria. O voto majoritário serve para eleger o presidente do país, mas a ele cabe aplicar a proporcionalidade à governabilidade, convidando os grupos divididos para um projeto comum de país. Afinal, uma regra básica para atrair confiança é a inserção dos desconfiados no projeto que se pretende aplicar.
Que sejam setenta vezes sete!
André Sathler Guimarães é doutor em Filosofia e coordenador do mestrado profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados.
Malena Rehbein Rodrigues é doutora em Ciência Política, docente do mestrado profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados.
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