As referências à religião e a Deus nos discursos de parte dos deputados que decidiram, no domingo (17), pela abertura de processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff incomodaram religiosos. Em defesa da separação entre a fé e a representação política, líderes de várias entidades criticaram as citações e disseram que os posicionamentos violam o Estado laico.
Durante a justificativa de voto, os parlamentares usaram a palavra “Deus” 59 vezes, quase o mesmo número de vezes que a palavra “corrupção”, citada 65 vezes. Menções aos evangélicos aparecem dez vezes, enquanto a palavra “família” surgiu 136, de acordo com a transcrição dos discursos, no site da Câmara dos Deputados. A votação foi aberta pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, evangélico, com os dizeres: “Que Deus tenha misericórdia desta Nação”.
Para o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), composto pelas igrejas Evangélica de Confissão Luterana, Episcopal Anglicana do Brasil, Metodista e Católica, que havia se manifestado contra o impeachment, assim como a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ligada à Igreja Católica, as menções não surpreenderam. A presidenta da entidade, a pastora Romi Bencke, disse que as citações distorcem o sentido das religiões. “Não concordamos com essa relação complexa e complicada entre religião e política representativa”, afirmou.
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Segundo Romi, uma das preocupações dos cristãos é com o uso da religião para justificar posicionamento em questões controversas. A fé, esclareceu, pode contribuir, com uma cultura de paz, com a promoção do diálogo e com o fortalecimento das diversidades. Porém, advertiu, “Tem uma faceta de perpetuar violência”, quando descontextualizada. “Infelizmente, vimos que os parlamentares que se pronunciaram em nome de Deus, ao longo do mandato, se manifestam contra mulheres, defendem a agenda do agronegócio e assim por diante. Nos preocupa bastante o fato de Deus ser invocado na defesa de pautas conservadoras – é ruim adjetivar, mas é a primeira palavra que me ocorre – e de serem colocadas citações bíblicas descontextualizadas. Não aceitamos isso e eu acho que é urgente refletir sobre o papel da religião na sociedade”.
O teólogo Leonardo Boff, que já foi sacerdote da Igreja Católica, expoente da Teologia da Libertação no Brasil e hoje é escritor, também criticou o discurso religioso dos parlamentares que, na sua opinião, colocaram em segundo plano os motivos para o pedido de impeachment, as pedaladas fiscais e a abertura de créditos suplementares pelo governo de Dilma
Golpe de 64
PublicidadeEm seu blog na internet, Boff disse que os argumentos apresentados se assemelharam aos da campanha da sociedade que culminou com o golpe militar em 1964, quando as marchas da religião, da família e de Deus contra a corrupção surgiram. Ele destacou o papel de parlamentares da bancada evangélica que usaram o nome de Deus inadequadamente.
“Dezenas de parlamentares da bancada evangélica fizeram claramente discursos de tom religioso e invocando o nome de Deus. E todos, sem exceção, votaram pelo impedimento. Poucas vezes se ofendeu tanto o segundo mandamento da lei de Deus que proíbe usar o santo nome de Deus em vão”, afirmou. O teólogo também criticou aqueles que citaram suas famílias.
O Interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, entidade que reúne representantes de várias religiões, o babalawó Ivanir dos Santos, comentou que os deputados transformaram o que deveria ser uma decisão política, neutra, em um ato messiânico. “As pessoas têm tentado fazer uma atuação messiânica, voltada a uma orientação religiosa, que não leva em conta a diversidade da sociedade, ao justificar ações no Congresso Nacional”, disse.
Ele alertou para os riscos de as convicções morais e religiosas, na política, serem usadas para atacar religiões com menos fiéis, como é o caso do candomblé e da umbanda.
“Parte das pessoas que falaram em Deus e religião, e que agora ganham mais força, persegue religiões de matriz africana”, denunciou. “A nossa preocupação é com as casas irresponsavelmente associadas ao diabo e incendiadas, as de candomblé, e com a educação sobre a África e a cultura afro-brasileira, onde dizem que queremos ensinar macumba”.
Budistas
Os budistas acreditam que os deputados misturaram religião e interesses particulares. O líder do Templo Hoshoji, no Rio, o monge Jyunsho Yoshikawa, se disse incomodado e lembrou que os representantes deveriam ter mais cuidado. “Não foi agradável ouvir os discursos em nome de Deus, como se representassem Deus e como se Deus estivesse falando ou decidindo”, advertiu. “Religião e política não se misturam. Política envolve interesses pessoais”.
O monge afirmou que, como seres humanos, os políticos são “imperfeitos”, e lamentou que o Congresso seja uma pequena mostra disso .“É preciso olhar no espelho. Tudo que vimos é o que a sociedade é. Se teve citação despropositada de Deus, um xingando o outro de ‘bicha’, se teve cusparada ou defesa do regime militar é porque nossa sociedade é assim. Não adianta querer melhorar a política se nós não buscamos nos tornar pessoas melhores”, disse Jyunsho, em relação ao episódio em que o deputado Jean Willys (Psol) cuspiu em Jair Bolsonaro (PP).
Da mesma forma pensam ateus e agnósticos, aqueles que não acreditam em Deus ou qualquer outra divindade. O presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, Daniel Sottomaior, também questionou a postura de deputados, evangélicos principalmente. Para ele, a falta de compreensão sobre um Estado Laico, neutro, fere a liberdade da população.
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