Deputados de diversos partidos têm barrado a votação de um conjunto de proposições que, combinadas, permitem que cidadãos não só apresentem projetos de lei, atribuição precípua de parlamentares, como também sugiram alterações de texto e interfiram nas discussões de conteúdo durante a tramitação. Tudo por meio virtual. As matérias, na verdade, visam dar caráter legal e nortear o funcionamento de uma plataforma interativa produzida pela Diretoria de Inovação e Tecnologia da Informação (Ditec), como passou a se chamar o antigo Centro de Informática da Câmara (Cenin) a partir de dezembro de 2017. Mas alegação de que robôs atuarão no lugar de pessoas, segundo deputados ouvidos pelo Congresso em Foco, travou a discussão das matérias.
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Um dos projetos oficializa o uso de assinatura eletrônica para permitir a subscrição de projetos de iniciativa popular e petições públicas. Trata-se do Projeto de Lei (PL) 7574/2017, que teve regime de urgência para votação em plenário aprovado em dezembro passado. Concebida por uma comissão especial da reforma política que funcionou no ano passado, a matéria já entrou e saiu de pauta diversas vezes e, segundo fontes ouvidas pela reportagem, líderes de bancada têm impedido que ela seja apreciada em plenário. O texto regulamenta a participação dos cidadãos nas decisões do Congresso e, além dos próprios projetos de iniciativa popular, assegura a voz do povo na sugestão de plebiscitos e referendos.
Já o Projeto de Lei 7005/2013, derivado de outro projeto da ex-senadora Serys Slhessarenko (ex-PT-MT), acrescenta dispositivos na Lei 9.709/1998 para viabilizar a possibilidade de subscrição eletrônica para apresentação de projetos de lei de iniciativa popular, como explica o resumo da matéria. Segundo o texto, pronto para o plenário da Câmara desde 2013, são consideradas as assinaturas manuais e eletrônicas dos eleitores. Projetos que não atingirem número mínimo de assinaturas fixadas em lei, continua o PL 7005, passam a tramitar na forma de sugestão legislativa (leia mais abaixo).
Em tramitação conjunta com a proposta anterior está o Projeto de Resolução (PRC) 217/2017, de autoria do deputado Eduardo Barbosa (PSDB-MG), que visa assegurar transparência e participação popular no processo decisório da Câmara. No quesito transparência, o texto prevê que a Casa terá de liberar projetos, pareceres, emendas e destaques para votação em separado na internet, em formato de dados abertos, com acesso livre e irrestrito para que cidadãos possam ler e compartilhar cada conteúdo. Além disso, o PRC garante que internautas participem da análise de proposições na Casa por meio de fóruns de discussão e outras plataformas abertas no portal da Câmara. Relatado pelo deputado Pedro Cunha Lima (PSDB-PB), o texto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça em 10 de maio e, apensado ao PL 7005, também esbarra na resistência de alguns deputados.
Leia a íntegra do PL 7574/2017
Leia a íntegra do PL 7005/2013
Leia a íntegra do PRC 217/2017
As três proposições, além de outros textos que tratam de assunto semelhante, estão longe de constar da lista de prioridades dos deputados. Vice-líder do DEM na Câmara até 11 de abril, José Carlos Aleluia (BA) garante não ser contra a participação popular, desde que ela se dê por meio de pessoas, não de robôs. “Muito do que é feito, hoje, pela internet é controlado por robôs. É um projeto completamente absurdo, que paralisaria a Câmara da maneira com que foi colocado inicialmente”, disse à reportagem o parlamentar baiano, referindo-se ao PRC 217 e apontando necessidade de alterações na matéria.
“A representação popular é importante, mas não pode ser substituída por robô. Da maneira que o projeto foi apresentado, o que iria predominar era a ação dos robôs. Da maneira que eu vi, esse projeto não evitava o robô e paralisava a Câmara e o Congresso, de modo geral, e não tinha a menor chance de ser aprovado”, acrescentou Aleluia.
Adversário de Aleluia no campo político-partidário, o vice-líder do PT na Câmara Paulo Teixeira (SP) concorda com o colega sobre a ameaça dos robôs. Informado pela reportagem que a plataforma desenvolvida pelo Ditec dispõe de mecanismo de conferência de títulos de eleitor no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – uma das exigências para apresentação de matérias –, o parlamentar disse não haver um sistema eficaz de detecção de robôs na Casa.
“Hoje se faz consulta aqui [na Câmara] e os robôs atuam como ninguém. Eu sou favorável a essa política [de interação popular], mas tem que haver esse cuidado, se não vai acontecer isso [uso de robôs]. Aqui já acontece”, ponderou Paulo Teixeira, também em referência ao PRC 217 e sinalizando que pode mudar de posição. Para o deputado petista, o projeto não foi devidamente explicado e a ameaça do “robonauta” permanece.
“Se ele [o relator Pedro Cunha Lima] tiver todos esses cuidados, em havendo todos os cuidados contra os robôs, eu sou favorável. Se ele mostrar para todos nós que o projeto nos protege dessa influência maléfica, eu sou favorável. Por exemplo, eu fiz uma consulta [virtual] e o pessoal, por diversas vezes, usou robôs nos meus contrapontos. Assim que o projeto voltar para a pauta eu vou ver se ele se cercou de todos esses aspectos”, acrescentou o parlamentar paulista.
Riscos e riscos
Servidores da Câmara envolvidos no projeto do Ditec disseram à reportagem que não há, tecnicamente, a menor possibilidade de que robôs atuem na apresentação de projetos de maneira indetectável. Uma das fontes ouvidas pelo site, além de assegurar a eficiência da plataforma, afirmou ainda que os deputados confundem interações em enquetes, recurso também disponível no portal do Senado, com o processo de tramitação de propostas. Os servidores falaram ao site sob condição de não terem sua identidade revelada.
Eles explicam que a plataforma está protegida com um complexo sistema para impedir a ação dos robôs, com tecnologia de ponta. Um dos servidores especializados em tecnologia da informação disse ao Congresso em Foco que, mesmo com o vasto aparato de informação à disposição dos deputados, a impressão é que alguns deles estão achando que o projeto de interação popular lhes reduz a influência no processo legislativo.
Relator do PRC 217, Pedro Cunha Lima disse à reportagem que prefere o risco dos robôs à ameaça de cerceamento à participação popular. “Existem mecanismos de segurança. Mas, ainda que haja algum risco, o que não podemos é deixarmos de utilizar uma tecnologia para que tenhamos um outro desempenho democrático porque existe um risco disso ou daquilo. E não ouvir o povo, não tem risco? Deixar como está não tem risco? Porque a nossa democracia não funciona, as pessoas não se sentem representadas, a Câmara é uma instituição que tem uma rejeição altíssima. Então, em vez de a gente se renovar, se oxigenar de participação popular, ainda que haja risco disso ou daquilo, acho muito mais arriscado deixar tudo como está”, reclamou o tucano.
O deputado paraibano diz não acreditar em boicote ao seu relatório, já modificado. “Na pauta, realmente entram mil coisas e vota-se meia, porque o regimento [interno da Câmara] não permite que a gente renda. Na verdade, não é questão de retirada de pauta, mas sim porque tudo entra na pauta e sai da pauta. Teria que haver uma prioridade do presidente [da Câmara, Rodrigo Maia, DEM-RJ], do colégio de líderes para poder chegar à votação dele”, acrescentou.
Para mitigar a resistência, Pedro Cunha Lima retirou do projeto original, por exemplo, a obrigação para que presidentes de comissões concedessem a palavra também a cidadãos previamente convidados para audiências de debate, como já ocorre em audiências públicas. Outra reclamação foi feita por Aleluia contra a previsão de que a pauta de votações em plenário contivesse proposições de iniciativa popular apresentadas via ferramenta digital. Para o deputado baiano, seria uma interferência profunda na atividade parlamentar “e poderia representar tentativa de democracia direta que enfraqueceria o Poder Legislativo”.
Diante da demanda, o relator modificou o texto para determinar que uma vez por semestre, tanto em plenário quanto em comissões temáticas, ao menos uma sugestão legislativa considerada prioritária por internautas fosse incluída na chamada Ordem do Dia (período de votação). “O que inviabiliza o trabalho na Câmara não é a participação cidadã; o que inviabiliza a pauta na Câmara é um regimento que já não nos serve mais”, rebateu Pedro Cunha Lima, referindo-se a manobras regimentais como obstrução para efeito de quórum, que prolongam discussões e, muitas vezes, impedem o avanço na pauta.
Alta tecnologia
Outra fonte ouvida pela reportagem negou haver vulnerabilidade do sistema de interação à ação de robôs e hackers, por exemplo. “Não tem esse risco. Primeiro porque o cidadão vai informar dados que irão ser encaminhamos ao TSE. Quando do retorno, será encaminhado SMS ao celular do cidadão. Há vários pontos de parada [passos de checagem] para que se teste e verifique”, disse a fonte, também especializado em tecnologia da informação.”As pessoas podem estar confundindo com enquete, quem vota a favor ou contra um PL, por exemplo. Não é isso.”
Ela explica que tudo o que vier a envolver o internauta na discussão de proposições será publicado em um mecanismo chamado “blockchain“, tecnologia de bloqueio usada nas bitcoins, as moedas virtuais. O objetivo é que que qualquer cidadão possa verificar, a qualquer momento, se há fraude em suas interações. Para tanto, a Câmara fechou acordo com o TSE e terá tecnologia de ponta empregada no sistema. “Não é aquele tipo de transação que se faz em segundos. São vários passos”, acrescenta a fonte.
Além disso, explica, há mecanismos de confirmação de imagens contra robôs, bem como regras em que só uma pessoa pode aderir a um projeto de lei. “A pessoa receberá mensagem de SMS no celular e deve confirmar o número em um portal da Câmara. E o principal: toda a sequência de blocos votados pelo cidadão sobre cada proposição será publicada – preservando-se o que é confidencial, como título de eleitor e CPF –, para que qualquer pessoa ou ONG no mundo inteiro possa auditar.”
Multiplataforma
A plataforma do Ditec vai permitir a interação também com outras iniciativas de incentivo à participação popular no processo legislativo. “Foi prevista a recepção de listas coletadas por outros portais, como o Mudamos. Mas tudo vai passar rigorosamente pelos mesmos passos”, informa a fonte, para quem será possível avançar mais na segurança quando o Documento Nacional de Identificação (DNI) digital for implantado, o que o TSE prevê que acontecerá a partir de julho.
“O TSE está implantando. Um aplicativo vai ler a sua digital e associá-lo a CPF, mais RG, mais título de eleitor. Isso será conta para geração de um QR Code [código eletrônico]. E, com seu celular, você poderá se identificar em qualquer serviço público. O lançamento do DNI no Congresso será no próximo mês. Parlamentares e servidores gerarão o seu. O TSE deseja cadastrar todos os eleitores. Isso vai permitir mais segurança ainda”, vislumbra.
Além da resistência aos projetos com a alegação da ameaça dos robôs, a fonte denuncia a apresentação de “jabutis” nos projetos, ou seja, sugestão de dispositivos com intenção diversa do projeto. “Há deputados defendendo o certificado digital para cada eleitor. Isso não é popular. Há um comércio por traz dessa história de certificado digital. Colocar esse jabuti é impedir que a solução tecnológica seja popular. Nem os bancos pedem isso”, prosseguiu, advertindo que a tecnologia da blockchain, quando for implantada no Brasil, vai quebrar cartórios e os próprios certificados digitais. “O próprio TSE está saindo com uma solução que não é o certificado digital. Estamos alinhados ao tribunal.”
“Hoje há certificados digitais de autoridades certificadoras privadas e também há os certificados criados pelo Instituto Nacional de Tecnologia da Informação por meio da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP Brasil). Mas tudo é pago e tem validade de um a três anos, dependendo do que você quer pagar”, afirmou a fonte, acrescentando que certificados digitais também barrariam robôs, mas são caros para o consumidor com rendimentos limitados, maioria do eleitorado brasileiro, e não são a única alternativa.
“Faça um teste. Vá ao Google e consulte quanto custa um certificado digital aqui no Brasil. Não tem condição de se exigir isso de um cidadão de baixa renda”, concluiu.
Efeito colateral
Graças à resistência de deputados às matérias, o projeto do Ditec da Câmara não poderá ser levado à Campus Party Brasília 2018, feira de tecnologia a ser realizada na capital federal entre 30 de maio e 3 de junho. Servidores envolvidos no projeto lamentam que, graças à postura de alguns parlamentares, será desperdiçada não só a possibilidade de apresentação da plataforma a grupos de vários países, mas também mais uma oportunidade de troca de informações em um dos principais eventos de tecnologia do mundo.
Além da oportunidade perdida, a não aprovação das matérias inviabiliza que sequer seja dado nome ao projeto. Enquanto as proposições não avançarem na pauta da Câmara, lamentam os servidores, o Ditec não poderá levar ao grande público os avanços referentes à participação popular obtidos por meio da tecnologia.
Um dos servidores lembrou que a resistência aos projetos de interação popular começou em março de 2016, quando da apresentação, por parte de um grupo da PGR, do pacote de projetos que ficou conhecido como 10 medidas contra a corrupção. Na ocasião, o STF exigiu que a Câmara conferisse cada uma das mais de 2 milhões de assinaturas de adesão ao conjunto de proposições – que, nas palavras do próprio deputado escolhido para relatá-las, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), foram “dizimadas” pelos pares.
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Burocracia regimental
As fontes ouvidas pela reportagem dizem reservadamente que deputados que se opõem à matéria, na verdade, não querem dividir a primazia da apresentação de projetos de lei. Atualmente, cidadãos só podem ver seus projetos avançarem no Congresso, individualmente, se suas sugestões alcançarem ao menos 20 mil adesões nos portais de ambas as Casas, depois da realização de enquetes virtuais. Mas eles dificilmente viram lei, devido a questões como os ritos do próprio Parlamento, as prioridades do governo da vez e dos parlamentares que o apoiam e à própria natureza das proposições, que enfrentam resistência dos mandatários.
No Senado, por exemplo, as sugestões são levadas a público na seção e-Cidadania, com uma enquete que informa ser possível opinar sobre o assunto em questão enquanto o projeto correspondente tramita no Senado, nos termos da legislação pertinente. “[…] proposições que tramitam no Senado estão abertas para receber opiniões conforme a Resolução 26/2013″, diz o site institucional. Qualquer pessoa pode enviar sugestões de lei para posterior exame dos senadores.
Depois de análise prévia de analistas legislativos, a sugestão passa a ser tratada como “ideia legislativa” que, caso atinja o número mínimo exigido, entra em tramitação na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado. A plataforma que realiza as enquetes e promove a interação com o público é o e-Cidadania. Atualmente, entre todas as 89 proposições que atingiram aquele número mínimo, apenas 45 estão sob análise da CDH e dez foram convertidas em projetos de lei ou propostas de emenda à Constituição. Ao todo, 4.562 sugestões estão abertas para receber apoio, enquanto 6.689 foram “arquivadas por ferir os termos de uso”.
Nos termos do artigo 61 da Constituição, além de cidadãos e dos parlamentares ou comissões do Congresso, projetos de lei podem ser apresentados pelo presidente da República, pelo Supremo Tribunal Federal, por tribunais superiores e pela Procuradoria-Geral da República. Nos casos de iniciativa popular, como a que resultou na Lei da Ficha Limpa, a tramitação começa na Câmara, uma vez cumpridas as exigências dispostas no parágrafo 2º do mesmo artigo (número mínimo de adesões, adequação técnica etc).
Como este site mostrou em 9 de maio, servidores públicos de todas as esferas podem ter assegurados, graças a um projeto popular de iniciativa individual, reajustes anuais de salário. A garantia consta da Sugestão Legislativa (SUG) 1/2018, que foi aprovada naquele dia pela CDH do Senado. Proposta via portal e-Cidadania por Jasiva Correa, cidadã do Rio Grande do Sul, a proposição passou a tramitar como projeto de lei e pode ir a plenário depois de mais exigências regimentais. Tudo vai depender das prioridades do comando da Casa.
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