A falta de fiscalização e freios sobre o uso da cota de passagens aéreas fez alguns gabinetes parlamentares se transformarem em verdadeiras agências de viagem, em que cada deputado distribuía bilhetes a eleitores, familiares, amigos e aliados. Quatro anos após o Congresso em Foco revelar a famosa farra das passagens, um inquérito em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF) traz detalhes curiosos sobre como funcionava esse esquema de compra e venda de créditos – bancado pela extinta verba de passagens, hoje incorporada à Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar (Ceap), o cotão.
Depoimentos incluídos nas mais de 1,6 mil páginas do inquérito que apura a responsabilidade dos deputados Aníbal Gomes (PMDB-CE) e Dilceu Sperafico (PP-PR) na farra das passagens indicam que o primeiro fazia malabarismos e recorria até mesmo a uma agência de viagens para atender às demandas aéreas de seu gabinete, familiares e eleitores. Mesmo tendo uma cota mensal de R$ 15 mil para viajar.
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Segundo a investigação, Aníbal chegou a dever, em 2009, R$ 38 mil a uma agência de turismo pertencente ao irmão de uma funcionária de seu gabinete. O valor correspondia, na época, a duas vezes à cota que ele tinha para gastar mensalmente e a quatro vezes o maior salário de um assessor parlamentar. A dívida foi cobrada pela própria funcionária logo após pedir demissão do gabinete, quando o nome do parlamentar surgiu no noticiário da farra dos bilhetes. O dinheiro foi pago 50 dias depois, apesar de o deputado viver com a “cota estourada”, conforme os depoimentos do inquérito.
Passagens aos montes
Como deputado pelo Ceará, Aníbal Gomes tinha direito a uma cota de R$ 15 mil mensais, mas recorria a antecipações de créditos de passagens que passavam dos R$ 40 mil. Valor que daria para bancar, atualmente, cerca de 40 passagens, de ida e volta, entre Brasília e Fortaleza. Procurado pela reportagem, o deputado, que declarou possuir R$ 6,8 milhões em patrimônio, não prestou esclarecimentos ao Congresso em Foco sobre a origem do dinheiro para quitar seus débitos.
A funcionária explicou por que o peemedebista não conseguia viver apenas com o benefício mensal. “O deputado sempre deu muitas passagens para seus eleitores, além de utilizar a cota para emissão de passagens para seus parentes e assessores”, explicou Ana Pércia Alux Bessa, funcionária do gabinete entre 1995 e 2009, em depoimento à Procuradoria da República no Distrito Federal em 26 de maio de 2009. “Era muito comum o deputado ultrapassar sua cota mensal.”
Para resolver esse problema, Aníbal Gomes se financiava de três formas. A primeira era antecipar créditos a que tinha direito na Câmara. Em três semestres, recebeu adiantados R$ 44 mil da Casa, segundo relatório da Terceira Secretaria. No primeiro semestre de 2007, foram R$ 14.233 antecipados. O valor equivale a quase um mês de sua cota de passagens à época. No segundo semestre daquele ano, foram adiantados R$ 14.529,89. E, entre fevereiro e julho de 2008, a Câmara antecipou R$ 15.409,65 a Aníbal Gomes.
Antecipação e empréstimos
As antecipações de cotas tinham de ser compensadas com descontos nos créditos seguintes a receber. Uma hora esse recurso se esgotaria. Por isso, Aníbal Gomes recorria também ao irmão de Ana Pércia, o agente de viagens Márcio Bessa, dono da agência Infinite. Ana Pércia afirmou ao Ministério Público que a empresa de sua família nunca lucrou com a operação. “Pelo contrário, às vezes ficava no prejuízo até que o gabinete tivesse recurso para recompor os bilhetes adiantados”, disse ela. Márcio declarou que o lucro vinha apenas da taxa de 10% paga pelas companhias aéreas (veja o depoimento).
Uma terceira alternativa era tomar empréstimo de créditos aéreos em gabinetes vizinhos, como os de Dilceu Sperafico (PP-PR), Vadão Gomes (PP-SP), Ademir Camilo (PSD-MG) e José Priante (PMDB-PA). “Era uma coisa normal pegar emprestado MCOs [créditos] com os deputados vizinhos para emissões urgentes”, disse Ana Pércia em 17 de junho de 2009, à comissão de sindicância da Câmara, que apurou o comércio de bilhetes. Servia tanto para abastecer o gabinete de passagens quanto para pagar dívidas contraídas com a agência Infinite.
Quatro anos
O inquérito, aberto em maio deste ano, apura a eventual participação de Aníbal, Sperafico e Vadão no comércio de créditos aéreos. O processo só foi aberto quatro anos depois das primeiras reportagens do site que revelaram que senadores e deputados usavam como queriam os bilhetes aéreos entregues a eles para exercerem seus mandatos. Havia comércio ilegal de sobras de créditos dos gabinetes, compradas com deságio de 40% por operadores de turismo. Até hoje, porém, apenas servidores e agentes foram responsabilizados pelos negócios ilícitos.
Sperafico disse ao Congresso em Foco que, por comodidade, pedia passagens a Aníbal Gomes para que a agência Infinite emitisse os bilhetes. “Pediam ao gabinete, que fazia essas reservas. Depois a gente entregava o voucher, e eles emitiam passagens para terceiros”, disse ele à reportagem, em maio deste ano, logo depois de o inquérito ser aberto no Supremo. Ele negou comercializar bilhetes.
Em 26 de abril de 2009, depois que o Congresso em Foco publicou reportagem com lista de voos internacionais pagos pela Câmara – na qual constavam viagens feitas sob responsabilidade de Aníbal Gomes –, Ana Pércia enviou uma carta ao deputado para colocar seu cargo à disposição. E, ao final, deixou o recado: uma fatura de R$ 38 mil pendente de pagamento na empresa de seu irmão. Era uma relação de passagens emitidas pela agência Infinite a pedido do gabinete a fim de “quitar com ele [Márcio Bessa]” os pedidos, afirmava a correspondência, datada de 26 de abril de 2009.
Ana Pércia anexou quatro páginas de voos realizados entre setembro de 2006 e dezembro de 2008, mas ainda não pagos (veja a carta). O valor foi quitado, segundo Márcio, o dono da agência. No documento, Ana Pércia afirma que o deputado não sabia da operação com a empresa do irmão. Mas, em depoimento ao Ministério Público e à Câmara, ela confirma que ele tinha ciência de tudo.
Dívida paga
O valor foi pago, segundo depoimento de Márcio Bessa prestado 50 dias depois da cobrança feita pela irmã. Ele disse à comissão de sindicância da Câmara que apurou o comércio ilegal de bilhetes, em 2009, que o deputado não lhe devia mais nenhum centavo. O operador também disse que o parlamentar tinha conhecimento das transações com sua agência, mas que não poderia participar do comércio por estar sempre na condição de devedor.
Em entrevista ao Congresso em Foco na semana passada, Márcio Bessa reafirmou que tudo foi quitado. Com que recursos, já que o deputado estava sempre endividado e a cota, estourada? Em depoimento de 2009, o agente afirmara que os pagamentos feitos por Aníbal Gomes eram sempre com mais emissões de passagens em favor da agência. Na entrevista, Márcio Bessa disse acreditar que a dívida final foi quitada com recursos próprios do parlamentar.
Ocorrência policial
O inquérito só chegou ao Supremo porque o advogado Sérgio Iannini fez uma ocorrência policial ao ver seu nome na lista de passageiros, revelada pelo Congresso em Foco, que tinham feito viagens ao exterior com a cota de deputados. O advogado foi a Paris após comprar os bilhetes na agência Infinite, que, para isso, usou créditos antes pertencentes aos deputados Gomes, Sperafico e Vadão Gomes (PP-SP).
Na ocorrência, feira na Delegacia do Consumidor em Brasília, ele destacou que sequer conhecia os parlamentares. A Polícia Civil de Brasília encaminhou o caso à Polícia Federal, que iniciou as investigações. Depois, a Procuradoria entendeu que o caso deveria ser remetido ao STF.
A reportagem procurou Aníbal Gomes e Ana Pércia. Em mensagem eletrônica, a servidora disse que ela e o deputado só se pronunciariam por meio de advogados. Mas, até o fechamento desta reportagem, nenhum esclarecimento foi prestado pela banca de advocacia.
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