Fábio Góis
“Ser tricolor não é uma questão de gosto ou opção, mas um acontecimento de fundo metafísico, um arranjo cósmico ao qual não se pode – e nem se deseja – fugir.” (Nelson Rodrigues)
Em 2009, a frieza da matemática decretava: a 11 jogos do fim do Brasileirão, o Fluminense tinha 99% de chance de ser rebaixado à segunda divisão do certame. Pela frente, jogos contra times que brigavam na parte de cima da tabela, como Cruzeiro e Palmeiras. Contras os mineiros, um capítulo à parte: na estreia do centroavante Fred, que jogava contra o ex-time, 3 x 2 de virada, com dois gols do craque tricolor. Ao final, o Fluminense não havia perdido sequer uma das partidas capitais, e realizou o milagre que a cegueira dos matemáticos insistia em desdenhar.
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Ledo engano
Foi a redenção do “time de guerreiros” que, no recém-encerrado Campeonato Brasileiro de 2010, coroou a arrancada com o título. Como diria o mais notável tricolor carioca, o escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, estava escrito “há seis mil anos antes do nada”. Com os títulos de 1970, o de 1984 e o deste ano, o Fluminense Football Club sagrou-se tricampeão brasileiro de futebol. (Um parêntese: a Taça de Prata conquistada em 1970, que o Fluminense tenta que a Confederação Brasileira de Futebol reconheça é a mesma que credenciou o Santos a se tornar campeão da Taça Libertadores da América, em 1962).
No último domingo (5) o Fluminense reuniu sua nação e, no jogo nervoso em que a vitória traria o título independentemente de outros resultados, um gol contra o Guarani de Campinas terminou em final feliz para grande parte das torcidas do Rio de Janeiro. No meio dos cerca de 80 mil espectadores que viram o triunfo no Estádio João Havelange (Engenho de Dentro, região metropolitana do Rio de Janeiro), o Engenhão, estava um torcedor especial – Wanderley Alves de Oliveira, o ex-jogador tricolor Deley, campeão brasileiro pelo Fluminense em 1984.
No meio de campo do time campeão naquele ano, Deley era o cérebro de uma equipe que tinha craques como o paraguaio Romerito e a dupla de artilheiros Washington e Assis, o “Casal 20”. Hoje deputado federal pelo PSC fluminense, ele diz ter chorado ao lado do filho caçula ao ver o gol de Emerson, ironicamente ex-atacante do Flamengo campeão de 2009, quando o segundo tempo da partida já era ameaça séria a cardíacos.
Em entrevista concedida na última sexta-feira (10) ao Congresso em Foco, Deley mencionou o eterno profeta tricolor Nelson Rodrigues para dizer que, depois do jogo, foi dormir, “feliz, com os recônditos da alma lavada”. “Fiquei muito feliz pelo Fluminense, mas não vi o jogo que gostaria de ter visto”, declarou o parlamentar, com a visão crítica de quem viu a ansiedade e o nervosismo transbordarem com o suor dos jogadores.
Sem se preocupar com a repercussão de suas declarações, Deley fez fortes críticas ao atual modelo de futebol praticado Brasil – tanto na gestão quanto na atividade em si. “O futebol brasileiro precisa ser retomado. Nós sempre fomos protagonistas no resto do mundo, e hoje nós somos apenas um futebol que copia o que há de pior pelo mundo”, reclama.
E também sem se arriscar a escalar a melhor seleção tricolor de todos os tempos (“É tanta gente boa…”), Deley disse que o clube precisa voltar as atenções para as categorias de base, reclama da interferência excessiva do patrocinador no departamento de futebol e, otimista, acredita em novo trinfo do Fluminense em 2011 – desta vez como campeão da Taça Libertadores da América, que credencia o clube vencedor a disputar o título mundial de clubes da Fifa.
Confira os principais pontos da entrevista com Deley:
Congresso em Foco – Onde o senhor viu o jogo do título e o que fez depois?
Deley – Eu fui ao Engenhão com meus filhos. O meu mais novo, o Gabriel, chorou e eu chorei junto com ele. Fiquei feliz de ver o Fluminense reconquistando um campeonato brasileiro depois de 26 anos. Só fui para o Engenhão porque é um estádio maravilhoso, mas sua localização é um horror, é cansativo chegar lá. Não sei para que interesse ele possa ter contribuído para ter sido construído onde foi. Mas depois do jogo eu fui dormir, feliz. Como diria Nelson Rodrigues, “com os recônditos da alma lavada”. Mas também consciente de que foi um jogo ruim, em que nós conseguimos achar um gol. Fiquei muito feliz pelo Fluminense, mas não vi o jogo que gostaria de ter visto.
O argentino Darío Conca foi mesmo o melhor jogador deste campeonato?
Foi o Conca. Ele brilhou até pela sua regularidade, pela sua frequência. Foi um jogador que fez a grande diferença nesse Campeonato Brasileiro.
Com que jogador do Fluminense do passado o senhor o compararia?
Esse negócio de comparação é muito difícil. Talvez com o Romerito [companheiro de Deley no time campeão de 1984], pela sua movimentação, pela sua agilidade dentro do campo. Acho que, mais ou menos, ele tem esse espírito do Romero dentro da equipe atual.
E o Fluminense de hoje? É comparável com o do passado?
O Fluminense precisa realmente renascer, criar uma nova cultura. Precisa acontecer várias vezes o que diz o próprio hino, que é “um clube tantas vezes campeão [o Fluminense foi 30 vezes campeão estadual]”. Precisa estar beliscando não só os campeonatos estaduais, mais o Campeonato Brasileiro, a Libertadores. Mas não com esse modelo, que eu considero maléfico e, no médio e no longo prazo, pode ser muito ruim.
Pode ser campeão da Taça Libertadores da América do próximo ano?
Pode, até porque o patrocinador [Unimed] tem muito poder financeiro. E acho que, mais do que nunca, ele vai querer investir. Quando ele entrou no Fluminense, era o quarto dentro do mercado da saúde. Hoje ele é o primeiro disparado, líder de mercado. Hoje ele posiciona a marca dele muito bem, e ele já conseguiu vender isso para cooperativas. Isso faz muito bem. Eu entendo que eles vão fazer novas contratações que vão fazer com que o Fluminense se torne um sério candidato à conquista da Libertadores.
O senhor poderia escalar o melhor Fluminense de todos os tempos?
Aí é muito difícil. Posso citar alguns grandes jogadores, como Pinheiro, Rivelino, Paulo César Caju, Ricardo Gomes, Gerson. Fluminense teve tanta gente boa… É difícil escalar uma equipe dos melhores de todos os tempos.
E o Thiago Silva (que hoje joga no Milan)?
Thiago Silva é um monstro [o deputado cita o apelido do zagueiro entre os ex-companheiros de Fluminense]. Com certeza ele estaria junto com o Ricardo Gomes na zaga.
Como o senhor se sente tendo feito parte daquele timão que venceu o Campeonato Brasileiro em 1984 e, 26 anos, ver novamente o Fluminense campeão?
Muito feliz. O Fluminense precisava desse título, até para fortalecer a sua marca. Mas fico muito preocupado de o Fluminense estar hoje numa dependência muito grande de um patrocinador, sabendo que o investimento nas divisões de base não está existindo. A gente espera que eles mudem o foco e se comprometam em investir na alma do Fluminense, que é Xerém (região serrana do Rio de Janeiro, onde o clube tem um centro de formação de atletas).
Falando em patrocinador, como o senhor avalia a interferência dos investidores no departamento de futebol?
Não, é muito ruim. O modelo que existe hoje é muito ruim. Na verdade, eles são mecenas. Acho importante – e hoje o futebol não vive sem patrocinador –, mas não da forma, com o modelo que existe hoje no Fluminense. Espero que o novo presidente [o advogado Peter Siemsen, eleito no último dia 30 para o biênio 2011-2012] mude essa relação – até pelo conhecimento que eu tenho do que está havendo dentro do Fluminense: a garotada está comendo pão com ovo, você tem lá uma televisão para 80, 100 garotos. Isso é muito ruim, o Fluminense tem uma dívida muito grande que só vai conseguir ser paga se você conseguir produzir atletas, vendê-los, enfim, criar uma política com vistas à nossa própria economia. Temos um mercado em que preciso produzir atletas para vender. Nossa economia ainda não consegue manter esses atletas aqui, estamos praticamente numa pré-falência.
Como o senhor avalia a relação entre política e futebol?
Tem que mudar o Congresso, tem que mudar o futebol. O país tem que evoluir para cabeças mais arejadas, porque o futebol faz parte do processo de nossa sociedade. Ele também está muito contaminado, está muito mal administrado. Outro dia o Arthurzinho, que foi um grande craque do futebol, disse o seguinte: quando você pega um jogo de futsal na televisão, quem está analisando é o cara que jogou futsal; quem está analisando basquete é o cara que jogou basquete; quem está analisando o vôlei foi o cara que jogou vôlei… Mas, no futebol, tem um monte de gente que dita normas, que dita o seu estilo. Também dentro do futebol tem pessoas querendo fazer carreira, mas não conhecem nada de futebol.
O senhor poderia fazer uma comparação entre os atletas da sua época de jogador com os de hoje?
Há uma deturpação muito grande – e esse é um processo que vem já de um longo tempo – em relação à escolha de nosso estilo de jogo. Os gaúchos tomaram conta de parte da mídia, de parte do futebol, e esse estilo que existe hoje descaracteriza o futebol brasileiro. Outro dia eu vi, nesse encontro que nós tivemos sobre o futebol [Futcom] promovido pelo [Carlos Alberto] Parreira, todo mundo falando que a Espanha é a grande escola a ser copiada. E eu fico muito assustado, porque nós perdemos todos esses anos deturpando e desvirtuando o nosso estilo. O futebol brasileiro precisa ser retomado. Nós sempre fomos protagonistas no resto do mundo, e hoje nós somos apenas um futebol que copia o que há de pior pelo mundo.
O que o senhor acha do Muricy Ramalho, técnico que levou o Fluminense ao topo em 2010?
O Muricy é um cara espetacular. Só que ele, também… É como ele mesmo falou. Outro dia ele disse que sonhou com o Telê [Santana, ex-técnico de futebol que foi uma espécie de mestre de Muricy], mas ele mesmo, no jornal, faz jus ao que eu vou falar. Ele mesmo disse que os times do Telê eram muito mais soltos, times muito mais divertidos de ver. Muricy é muito mais pragmático. Acho que o Muricy tem duas escolas, e ele mesmo também já falou isso: a do Telê e a do [Rubens] Minelli. Eu acho que hoje ele puxa muito mais para o lado do Minelli. Só que nós, no Brasil, estamos entendendo que o negócio é vencer. Só que eu acho que o futebol brasileiro pode vencer também sendo protagonista de um futebol bonito, como é no Barcelona, na Espanha. Ele é uma figura que tem seu brilho, sua importância, é de um caráter espetacular. Agora, acho que ele está muito mais para o lado dos gaúchos do que para aquilo que eu imagino que deve ser o futebol brasileiro.
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