Antônio Carlos de Medeiros *
O governo do presidente Michel Temer navega em ondas fortes, no olho de uma prolongada ciclotimia presente na sociedade, nas redes sociais e na opinião publicada. Agora, embora tido como transitório, na caminhada para 2018, o governo já é tido e percebido como poder incumbente. Sem mais referências a heranças passadas: agora é com Temer. De Temer para Temer. Sem mecanismos de defesa.
No limiar de 2017, sob a espada da Lava Jato e a rejeição das ruas, parece claro que a sorte do governo depende e dependerá da intrincada tarefa de articular a pacificação das elites e, ao mesmo tempo, dialogar com a sociedade impaciente e fraturada. Essa difícil confluência só tem condições de dar certo se for baseada na negociação permanente de uma Agenda, para apontar um norte para o país e servir de argamassa para um novo Bloco de Poder, na direção de 2018.
Leia também
A pactuação de uma Agenda está em curso. Projetos importantes foram aprovados, como a PEC do controle das despesas, ou estão tramitando, como a Reforma da Previdência. Também foram aprovados o projeto da Base Curricular Nacional, a Lei das Estatais e a Lei Serra no setor de petróleo. Além disso, a Medida Provisória 752 procura estimular os investimentos em infraestrutura. Medidas microeconômicas também estão na pauta, assim como a questão da legislação trabalhista e a lei de falência. A reforma política continua também na agenda.
Essa agenda, é preciso ter clareza sobre isso, é a essência da transição representada pelo governo Temer. Por isso, ela precisa ser pactuada a muitas mãos. Não pode ser só do governo, ou só da equipe econômica. Nem tampouco só do governo e do parlamento. É imperativo olhar para os condicionantes societais. É crucial conversar regularmente com a sociedade. Dialogar mais regularmente com as corporações de trabalhadores e de empresários, com os meios de comunicação, com as redes sociais, e com os novos movimentos sociais e atores dessa nova lógica da ação coletiva que emergiu no país desde as manifestações de 2013. Enfrentar o conflito distributivo. Explicar as medidas de austeridade. E ter um pouco mais de pressa e ousadia nas políticas de crescimento. Equação difícil. Mas é preciso ousar. Não se trata de forjar “feitiçarias” na área econômica. O que é preciso é pensar fora da caixa.
Sim, no campo da política econômica, vale repetir, é preciso pensar também fora da caixa. A equipe econômica tem credibilidade. É de alto nível. A pauta do ajuste fiscal, já se sabe, é condição necessária, mas não suficiente, para recolocar o Brasil no rumo do desenvolvimento. Não podemos errar no “timing”. 2017 pode, e deve, ser um ponto de inflexão.
PublicidadeO Banco Central ancorou as expectativas de inflação, com a marcha já iniciada da queda dos juros, provocando uma salutar e crucial reversão das expectativas, juntamente com as medidas já tomadas no campo do ajuste fiscal e com a prioridade conferida às medidas microeconômicas.
Agora, o Banco Central precisa dar mais um passo importante. Precisa ter maior protagonismo para que se enfrente o grave problema da alavancagem de crédito. Além do endividamento das famílias – que já começou a ser encarado e minimizado, por exemplo, com a liberação do saldo inativo do FGTS agora em 2017 -, há que se dar sentido de urgência à questão do gigantesco volume da dívida de mais de 100 entre as maiores empresas brasileiras, no limiar de um processo recessivo de insolvência. É uma situação crítica. Tudo somado, incluindo-se os débitos da Petrobras, esse volume de dívidas já pode estar próximo da barreira de R$ 1 trilhão!
Esse estoque de dívidas, é óbvio, tem um efeito recessivo no país. Um problema que precisa ser enfrentado. É uma crise colossal, mas agora num momento histórico diferenciado. Hoje, o Brasil apresenta um lastro positivo, de proporção histórica, em sua liquidez internacional. E não tem mais aqueles estrangulamentos externos que, nas crises do século passado, foram sempre o fato responsável e determinante pelas recessões pelas quais o país passou.
Mas parece que estamos diante de uma contradição. O país agora está lastreado em robustas reservas internacionais. Aproximadamente US$ 370 bilhões. Entretanto, está diante de sua maior crise econômica de todos os tempos. É intrigrante. A política econômica precisa considerar esse lastro em reservas. Apenas um esforço fiscalista, conjugado com mudanças corretas, mas de efeitos apenas de longo prazo, não garantem um ponto de inflexão para um horizonte de crescimento e redução do desemprego com inclusão social.
Quem produz PIB não é o setor público. É o setor privado. Mas esse está com dívidas colossais e com permanente ameaça de encolhimento, desmobilização, alienação e falência. Muitas empresas estão próximas de um processo entrópico perigoso para o país. Encolhendo e derretendo. Não se pode perder o “timing” para a superação desse problema.
É urgente o desenho de uma estratégia para a geração de liquidez de curto prazo. Para minimizar déficits operacionais das empresas, gerar massa de capital de giro e sustentar um sadio retorno econômico, revertendo a curva do desemprego. Um choque de crédito e liquidez para a redução dos riscos – o que é, neste momento, crucial para a economia brasileira.
O debate e o pensamento econômicos têm evoluído para conceitos mais orgânicos e histórico-estruturais. Na sua abordagem institucional, Douglass North já evidenciava que marcos institucionais de estímulos produtivos são hoje mais benéficos do que perversos, ao contrário do que pensavam muitos.
Recentemente, André Lara Resende publicou um ensaio instigante e seminal, argumentando que a teoria monetária, que até hoje balizou as políticas públicas dos bancos centrais, pode estar equivocada. Para ele, “a mirabolante reviravolta da teoria macroeconômica sugere que a separação entre as políticas monetária e fiscal é mais artificial do que se acreditava… exigir que a política monetária faça, mais do que circunstancialmente, o trabalho de controle da inflação, cuja estabilidade depende, em última instância, do equilíbrio fiscal de longo prazo, pode ser contraproducente… sem equilíbrio fiscal não há saída… o custo do conservadorismo intelectual nas questões monetárias, durante as quatro décadas de inflação crônica do século passado, já foi alto demais” (VALOR, 13/01/2017).
Concretamente, o Banco Central, para tratar do problema da alavancagem do crédito, poderia adotar medidas para constituir uma fonte de financiamento de curto prazo para o setor privado, a ser repassado pelo sistema financeiro – na linha da experiência radical exitosa do chamado Quantitative Easing (QE), praticada pelos bancos centrais das economias avançadas na crise de 2008. Como se sabe, mesmo com a injeção da liquidez do QE, a inflação não explodiu, pelo contrário, continuou estável.
Visões ortodoxas poderão julgar que uma atuação dessa natureza e porte pelo Banco Central poderia constituir uma espécie de “volta ao passado” ou “feitiçaria”, desvirtuando, por suposto, a sua função clássica no conceito de guardião da moeda. O êxito das recentes experiências históricas com o chamado QE, mostra que os bancos centrais também podem ter o papel de estimular o crescimento econômico. Essa reflexão sobre o papel contemporâneo dos bancos centrais está na ordem do dia (ver, por exemplo, “The Future of Monetary Policy” – Oliver Adler, Zoltan Pozsar, David Yemack, Stefani Kostadinova – Credit Suisse AG – Research Institute, 17/01/2017).
Hoje, o sistema bancário brasileiro está capitalizado e preparado para interagir com o Banco Central na formatação e implementação de um processo de refinanciamento das mais de 100 grandes empresas brasileiras que, juntas, representam aproximadamente 17% a 20% do PIB brasileiro. Já se sabe que os maiores bancos privados do país – Itaú, Bradesco e Santander – começaram a se organizar, recentemente, para evitar uma crise ainda maior, que se instalaria com uma eventual espiral de falências e recuperações judiciais. Todos esses bancos já fizeram provisões para perdas bilionárias.
Esta concertação para a geração de liquidez de curto prazo é uma realidade no plano internacional, desde 2008. O FED, nos Estados Unidos, o Banco Central Europeu, na Europa, além dos Bancos Centrais do Japão e da China, vêm aplicando medidas de geração de liquidez e estímulo ao crescimento econômico.
Aliás, na crise de 2008, o Banco Central do Brasil atuou de forma competente e não ortodoxa. Gerou liquidez para o sistema de comércio e serviços exterior, criando linhas de liquidez externa. Por que não fazer algo semelhante agora, só que para o mercado interno, tendo como parâmetro as taxas de juros internacionais que remuneram as nossas reservas internacionais?
Nos diálogos e reflexões que vem fazendo, internamente e com a sociedade civil, o governo Temer precisa considerar essa ideia de concertação para a geração de liquidez, sem preconceitos ideológicos ou rigidez intelectual. Essa ideia não tem “partido”. Ela é fruto de experiências de sucesso no mundo desenvolvido e de recentes reflexões intelectuais para “pensar fora da caixa”.
Conjugando as medidas já alinhavadas – no campo do ajuste fiscal e no campo de medidas para o crescimento de longo prazo -, um “choque de liquidez” pode desencadear uma reversão mais acentuada e rápida das expectativas e uma reversão da taxa de desemprego e da taxa de crescimento.
Tudo somado, haveria horizonte para reverter o pessimismo instalado na sociedade e para criar novas condições de legitimidade para o governo Temer fazer a travessia para 2018. Por que não? O Brasil tem pressa.
* Pós-doutor em Ciência Política pela The London School of Economics and Political Science.
Deixe um comentário