Bráulio Santiago Cerqueira*
Em janeiro deste ano, dois fatos relacionados à dívida pública brasileira receberam pouca atenção dos analistas: do lado da dívida externa, logo após mais um rebaixamento da nota de crédito do país anunciado pela agência de rating Standard & Poors, o Tesouro Nacional emitiu com sucesso US$ 1,5 bilhão de títulos em dólares no mercado internacional, com vencimentos em 2047 e taxa de retorno de 5,6% a.a., um custo menor do que o obtido à época do “grau de investimento”; já no final do mês, o Relatório Mensal da Dívida pública Federal revelou que o custo médio em 12 meses da dívida interna (DPMFi) alcançou, em dezembro de 2017, o mínimo da série histórica iniciada em 2005, 10,34% a.a..
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Fatos como esses, êxito nas emissões externas e internas, dilatação de prazos e custos cadentes do endividamento público, contrariam o senso comum que associa déficits primários e crescimento da dívida à deterioração das condições de financiamento do governo e, no limite, à impossibilidade do setor público honrar seus compromissos. Na lógica que equipara as finanças públicas às finanças domésticas, uma dívida maior deveria se traduzir em maiores taxas de juros cobradas do devedor, ou então em racionamento de crédito. Mas, como visto, nem uma coisa nem outra tem ocorrido com o Tesouro Nacional.
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Externamente, são dois os principais elementos explicativos para o sucesso da emissão recente de dívida soberana no mercado internacional. Primeiro, o contexto atual de abundância de liquidez (dólares) no mundo, um produto dos persistentes déficits externos dos EUA e das taxas de juros muito baixas praticadas nos países ricos. Em segundo lugar, o fortalecimento da posição externa do setor público brasileiro proporcionado pela política de compra de reservas internacionais no auge do boom das commodities da década passada, que redundou na mudança da posição do governo brasileiro de devedor líquido para credor líquido internacional.
PublicidadeComo pode ser observado, em 2005, o estoque de reservas internacionais do Brasil era de US$ 54 bilhões, enquanto a dívida externa líquida somava R$ 55 bilhões; em 2017, as reservas chegaram a US$ 374 bilhões, já o crédito (e não mais a dívida) externo líquido do setor público somou R$ 1.010 bilhões. Num quadro de solvência externa como esse, não é de surpreender que a perda do grau de investimento – apurado pelas mesmas agências de rating que classificavam, antes da crise global como triplo “A”, os créditos podres do subprime – pouco afete o apetite de investidores por títulos externos soberanos brasileiros.
Já internamente, nada mais inadequado do que comparar finanças públicas a finanças domésticas. Diferentemente de famílias, de empresas, ou mesmo de governos regionais e locais, o governo federal arrecada a maior parte dos impostos, emite base monetária (moeda) e se endivida na própria moeda. Mais ainda, o “preço” de sua dívida é, em grande parte, fixado por ele mesmo, na medida em que a taxa de juros de referência do sistema financeiro é determinada pelo banco central.
No Brasil, entre 2014 e 2017, a dívida líquida do setor público (DLSP), na esteira da redução do PIB, da queda de receitas com piora do resultado primário, da alta de juros reais e da volatilidade cambial, cresceu de 32,6% para 51,6% do PIB. No mesmo período, a dívida bruta do governo geral (DBGG) saltou de 56,3% do PIB para 74,0% do PIB. No entanto, como as finanças públicas não são iguais às finanças de uma dona de casa ou de um pai de família, em dezembro de 2017 o custo médio da dívida pública interna (DPMFi) alcançou o menor patamar da história, um reflexo da queda, desde o segundo semestre de 2016, da taxa Selic nominal para os menores valores da história.
Ainda elevada em termos reais (descontada a inflação, que caiu mais rapidamente do que a taxa nominal), a redução da taxa Selic expressa a profundidade da recessão do triênio 2015-2017 e seus efeitos sobre a inflação que, após a alta de 2015 explicada pelo choque de preços administrados, convergiu para abaixo do centro da meta em 2017 (IPCA de 2,95% no ano contra meta de 4,5%). De todo modo, o ponto a ser observado aqui é que, ao longo do tempo, o custo da dívida interna acompanha a taxa Selic e não o maior ou menor resultado primário.
Em resumo, o governo brasileiro hoje é credor líquido, dentre outros, do governo dos EUA, e conta para se financiar internamente com as menores taxas de juros nominais da história recente. Então por que, com a economia estagnada após uma das recessões mais profundas da história, não se trata de fortalecer a rede de proteção e promoção social e de recuperar o investimento público em infraestrutura estimulando, com isso, a produção e o mercado interno num país continental que ainda não garantiu cidadania ao conjunto de seus mais de 200 milhões de habitantes? Por que o governo, ao invés disso, além de congelar gastos sociais pelos próximos 20 anos (Emenda Constitucional no 95/2016) e reduzir o investimento público pela metade entre 2014 e 2017 (de R$ 96,6 bilhões para R$ 46,2 bilhões), insiste em uma agenda focada em cortes de despesas primárias, congelamento de salários e redução de servidores e na venda ao setor privado de ativos subvalorizados pela crise?
Sem pretender esgotar a questão, o terrorismo fiscal, a ideia de que o país e o governo quebraram, apesar de não corresponder à realidade, ajuda a molda-la na medida em que naturaliza escolhas políticas.
*Bráulio Santiago Cerqueira é mestre em economia, auditor Federal de Finanças e Controle, secretário Executivo do Unacon Sindical
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