Na década de 90, muitas companhias, que tradicionalmente fabricavam seus produtos mantendo grandes equipes de operários estáveis, adotaram o “modelo Nike”, ou seja, não seja dono de indústria alguma, fabrique seus produtos por meio de uma rede de contratantes e subcontratantes e gaste seu dinheiro com projetos de design e marketing. A alternativa era optar pelo “modelo Microsoft”: manutenção de um controle central rígido por parte de empregados/acionistas, chamado “núcleo de competência”, e terceirização de todo o resto com trabalhadores temporários. Essas companhias foram apelidadas “corporações ocas”, porque são unicamente formais, com um reduzidíssimo conteúdo.
Seguindo rigorosamente os princípios corporatistas, segundo os quais o Grande Governo une forças com os Grandes Negócios a fim de redistribuir os fundos para cima – entre os ricos – a segunda gestão Bush/Rumsfeld/Cheney, queria gastar menos com pessoal e transferir muito mais dinheiro público diretamente para os cofres das empresas privadas. Aliás, o dogma central do regime Bush era que a função do governo não é governar, isto é, cumprir as funções para as quais fora eleito, mas sim subcontratar a tarefa para o setor privado. Em síntese: por excelência, era um governo que atuava contra os interesses da população. De forma que o comprometimento do presidente Bush com o leilão do Estado, associado à liderança do vice Dick Cheney na terceirização das forças armadas americanas e ao patenteamento de remédios destinados a prevenir epidemias comandado pelo secretário de Estado Donald Rumsfeld, ofereceu uma visão do tipo de Estado que os três iriam construir: um “governo completamente oco”.
Então aconteceu o 11 de setembro. No relato de Naomi Klein, “ter um governo cuja missão central era a própria autodestruição não parecia boa idéia diante duma população aterrorizada, reclamando a intervenção de um governo forte e sólido”. Afinal, as falhas de segurança no 11 de setembro demonstraram as consequências de mais de vinte anos de sucateamento do setor público e de terceirização das funções governamentais para corporações movidas pelo lucro. Assim como o Katrina em New Orleans exporia as condições lastimáveis da infra-estrutura pública (e a cruel indiferença moral de seus políticos), os ataques revelaram um Estado que havia se tornado perigosamente fraco: equipamentos da polícia e bombeiros de Nova York quebraram em meio às operações de socorro, os controladores de tráfego aéreo falharam permitindo a ruptura dos circuitos de segurança dos aeroportos, uma vez que eram funcionários terceirizados cujos salários geralmente eram inferiores até aos dos garçons da praça de alimentação.
Klein observa que a desregulamentação da aviação civil começara no governo Reagan. Vinte anos depois, todo o sistema de tráfego aéreo havia sido privatizado, desregulamentado e enxugado, com a grande maioria do pessoal de segurança constituída por trabalhadores mal remunerados, mal treinados e não sindicalizados. A atitude das companhias aéreas quanto às medidas de segurança resumia-se em “aviltar, negar, adiar e reduzir custos”.
Mas tudo isso foi obliterado pela Guerra ao Terror lançada pela equipe de Bush – construída desde o começo para ser privatizada. Embora o objetivo declarado fosse a guerra contra o terrorismo, seu efeito foi a criação do complexo do capitalismo de desastre – uma nova economia apoiada em segurança doméstica, guerra privatizada e reconstrução de desastres, encarregada de construir e administrar um Estado de segurança privatizado, dentro e fora de casa. Se durante décadas o mercado vinha sendo nutrido com os apêndices do Estado, agora ele iria devorar seu núcleo.
Como protocapitalistas do desastre, os arquitetos da Guerra ao Terror fazem parte de um ramo de políticos corporatistas diferente de seus antecessores: para eles, as guerras e outros desastres constituem os fins em si mesmos. Quando Dick Cheney e Donald Rumsfeld fundem o que é bom para empresas como Halliburton, Lockheed, Carlyle, Bechtel e Gilead com o que é bom para os Estados Unidos e para o mundo inteiro, realizam uma espécie de projeção com conseqüências extremamente perigosas. Porque o que é positivo para tais companhias é o desastre – guerras, epidemias, enchentes, tsunamis e escassez de recursos.
Querem um exemplo? Segundo Naomi Klein, o plano de jogo de Washington para o Iraque era “chocar e aterrorizar o país inteiro, arruinar deliberadamente sua infra-estrutura, não fazer nada diante da pilhagem da sua cultura e história, depois tornar tudo aquilo correto por meio de um suprimento ilimitado de utilidades domésticas baratas e comidas prontas importadas: todo o Iraque seria comprado com DVDs, Pringles, Mcdonalds, Pizza Hut e cultura pop!”
O fato é que onde quer que tenha surgido, de Santiago a Moscou, de Beijing ao Iraque, com o governo Bush a aliança entre uma pequena elite das corporações com um governo de direita passou a ser retratada como uma espécie de aberração – capitalismo de patota, capitalismo mafioso, capitalismo-cassino. Que quebrou em outubro de 2008.
Guy Debord escreveu não sei onde que “num mundo totalmente unificado é impossível exilar-se”, referindo-se a si próprio como contestador do sistema. Só que tal afirmação também é válida em sentido inverso: num mundo totalmente globalizado e informatizado tornou-se impossível ocultar a realidade sob o manto da ideologia.
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