Em tempos de corrupção escancarada como se fosse série de TV, num bizarro documentário protagonizado pelos delatores da Odebrecht, o riso pode ser um santo remédio. A dica é Consuelo #Dicaboa, com o perdão do trocadilho. É com muita leveza e graça que ela, com seu sotaque portenho carregado, se presta a dar pitacos na grande rede sobre os mais variados assuntos, desde o comportamento da “nova mulher brasileira” (contém ironia) até como se maquiar usando apenas tonalidades de cinza. Qualquer alusão àquele prefeito que cismou com o colorido da cidade de São Paulo não é mera coincidência. Neste texto e nos videos abaixo, o leitor saberá o porquê.
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Consuelo é leve, feminina, um sorriso só. Mas não se engane; há uma dose de fina ironia nas agulhadas escondidas em entrelinhas tão sutis quanto instigantes. Seja no Youtube, onde desde junho tem um canal de sucesso e milhares de visualizações a cada vídeo postado, seja no Facebook, onde um deles chegou a ser visualizado mais de um milhão e 500 mil vezes (mais precisamente 1.505.152 vezes, em atualização feita às 21h17 desta segunda-feira, 17 de abril), Consuelo dita moda e espalha bom humor. E, por que não dizer, inunda as telas com um charme todo especial, eivado que é de inteligência.
Mas quem está por trás da personagem? Meio à brinca, a atriz, música e professora paulistana Livia La Gatto, 31 anos, se classifica como “flogueira e conselheira professional”. “Estoy aqui queriendo-te”, diverte-se, com uma pegada Shakira. Ela mesmo faz graça sobre o surgimento de Consuelo, que ganhou este nome por meio de enquete com internautas, em agosto. A fama repentina, ela admite, tem sido bacana. Feminista e com ideologia esquerdista, mas sem admitir influências partidárias, ela também participa da banda de música brega (definição da própria) Lírios na Lama. Veja que desbunde de performance no vídeo ao final desta matéria.
Livia é brasileira, mas seu pai é imigrante argentino – daí o sotaque de Consuelo, uma homenagem. Com quase 20 anos de experiência nos palcos, formou-se em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), e hoje dá aulas para escolas particulares, encena, canta, milita. Não com determinada bandeira político-partidária, ela frisa, mas por sua condição feminina. Foi por ocasião da manifestação que uniu mulheres em todo o país, no último 8 de março, que Livia deixou um pouco a atmosfera da personagem para protestar contra o machismo nas ruas de São Paulo – e, ela relata, sentir uma grande raiva do discurso feito naquele dia pelo presidente Michel Temer, quando o peemedebista disse que ninguém é capaz de acompanhar melhor a oscilação os preços nos mercados do que as mulheres e as responsabilizou pela criação dos filhos. Fala que, claro, caiu na zoeira das redes sociais, jeito por vezes eficaz de discutir assunto sério.
Dos males veio o bem. Em entrevista ao Congresso em Foco, Livia diz que ficou tão revoltada que se sentiu impelida a fazer algo, nem que fosse apenas graça. E fez, então, o vídeo com o tal milhão e meio de visualizações no Facebook (veja abaixo). “Fiz esse vídeo como forma de grito. Eu estou muito brava. Todas estamos. Esse discurso não chega até mim, não reverbera no meu lar, em como eu sou tratada. Eu sou de uma classe social que não é tão atingida assim [pelo machismo] – apesar de que a violência doméstica não tem classe social; ela está em todas as classes. Mas esse discurso alimenta o pensamento de uma pessoa machista, que agride uma mulher porque ela resolveu colocar o filho na creche e ir trabalhar. Isso me tira de sério”, relembra, ressaltando o poder do riso. “Minha vontade, depois desse discurso, era gritar. Mas, depois, pensei: ‘Tenho que fazer alguma coisa!’”, relata. “Eu não sou essa doçura da Consuelo”, brinca.
Para Livia, os sucessivos escândalos de corrupção e o proveito político que alguns fazem da crise banaliza a cultura da ofensa, principalmente nas redes. “Nós estamos muito acostumados com o discurso de ódio. Ele já está normal – e, por isso, já não está mais funcionando. Ele só serve para mostrar o quanto que as pessoas… As pessoas batem no peito e se dizem super certas. Ele [o discurso do ódio] não existe como discussão. Não há uma discussão, há uma colocação. Eu gosto do humor porque o humor torna as coisas mais leves”, pondera.
PublicidadeLivia confidencia que, diante da crise multifacetada que assola o país, sua personagem funciona como uma válvula de escape. “A Consuelo é um jeito de rir de si mesmo. Com essa situação, só rindo para não chorar. A Livia não é assim. Eu não dormi por causa desse discurso. A gente volta de uma passeata maravilhosa [8 de março], que luta pela igualdade entre homens e mulheres, para que as mulheres tenham os mesmos direitos dos homens, e ouvir um discurso desses é de matar. Matar a história. É pegar um livro de história e jogar no lixo, queimar”, lamenta a atriz.
No vídeo abaixo, por meio do qual rebate Temer com uma graça desconcertante, Livia-Consuelo ironiza o fato de, sendo mulher, ter sido içada pelo presidente a um status social mais “relevante”. Ao responder à pergunta em questão (“Como contribuir para a economia no Brasil?”), a personagem capricha no sotaque para mencionar o alto preço de um produto quando lança o primeiro petardo. “Está muito caro o azeite extra-virgem. Já vi flutuar muito o preço no mercado, de R$ 17,49 a R$ 47,99. Gente, é muita coisa, né? Fora Temer… quer dizer, fora o tomate – que também, gente, às vezes acha que é caqui, né?”, graceja a portenha bela, recatada e do lar. Só que não.
Além das aulas e dos vídeos, Livia hoje faz comerciais e séries na TV. Dá aula em colégios particulares, mas ficou dois anos dando aulas gratuitamente em escolas públicas. Antenada aos rumos do país, ela critica a atual política de incentivo cultural do Brasil, um dos motivos que dificultaram a realização de projetos que pretendia por em campo.
A atriz diz que o vídeo acima fez sucesso, entre outras questões, devido à sutileza e o espírito esportivo com que lidou com a misoginia de Temer. E foi curtido, principalmente, por mulheres – que, Livia faz questão de lembrar, “são a maioria no nosso país, né”? É, Livia.
A atriz acredita que o fato de ter sido apenas um vídeo de humor, que ironiza o machismo sem críticas pesadas, além do caráter apartidário, contribuiu para que coxinhas e petralhas tenham gostado de seu conteúdo. “A gente está falando de direitos humanos, de igualdade. Não está levantando nenhuma bandeira. O pessoal se sentiu à vontade de interagir, de marcar os amigos. Achei isso muito legal”, festeja.
“A Consuelo fez este vídeo como mulher, porque ela é mulher. Ela não pode ficar calada perante uma atrocidade dessas, que alimenta um pensamento que deve ser extinto.”
Onda de conservadorismo
Mas, a despeito da raiva que diz ter sentido, Livia vê o lado bom do discurso de Temer no Dia Internacional da Mulher. “O único lado positivo desse discurso misógino é a própria discussão. O que é válido nisso é levantar a discussão. O dia seguinte foi um dia em que todo mundo só fala disso. Ele é um [machista], né? Quem aplaude esse tipo de discurso são pessoas retrógradas, que saíram do armário mesmo. Batem no peito e dizem: ‘É, eu sou isso mesmo. Não tem que ter igualdade mesmo não, mulher tem que estar em casa’”, observa,
Para Livia, o que está em curso é uma onda de conservadorismo que tem ganhado o mundo, em que pesem a eleição do presidente norte-americano Donald Trump e o fortalecimento da extrema-direita em países como França e Espanha. “As pessoas estão saindo do armário na ignorância. Batendo no peito e dizendo ‘eu sou assim mesmo, eu sou retrógrado’. Mas ninguém cresce com esse movimento. As pessoas não estão se ouvindo. Do outro lado, há pessoas que se dizem libertárias, mas você não consegue conversar com essas pessoas. Acho que isso não é legal pra ninguém”, avalia,
Consuelo, na verdade, tem a persona de um homem. Um argentino que veio para o Brasil na segunda metade do século passado, comerciante, uma época em que o país não estava tão dividido entre esquerda e direita. Trata-se do próprio pai da atriz. Livia diz que eles pensam diferentemente e, além da diferença de épocas e realidades, há outra questão crucial. “Ele veio para o Brasil em uma outra época. Uma época em que – vendo hoje, depois que o tempo passou – era claro [definir] o que é certo e o que é errado. Hoje, que lado é o certo e que lado é o errado? Isso está muito confuso. Com certeza meu pai não está satisfeito”, diz Livia.
Ela se diz agradecida aos pais por ter tido a estrutura necessária para que estudasse e conseguisse entrar em uma concorrida universidade pública – uma das mais conceituadas da América Latina –, onde diz que foi estimulada a pensar de maneira plural. “Eles me deram condições que não puderam ter, numa época mais difícil”, acrescenta.
Livia relata ainda que Consuelo recebeu qualificações as mais curiosas – leia-se: ignorantes. Em especial uma que, para a atriz, merece estudo sociológico: “esquerdista feminazi”. “Só por falar da mulher. São termos totalmente opostos – o feminismo luta por igualdade de gênero, por direitos iguais entre homens e mulheres. E o nazismo, gente?! [risos] Que se atrela ao fascismo, um movimento completamente conservador, nacionalista no pior dos sentidos, separatista”, diverte-se, lembrando que a maioria dos críticos é formada por homens – uma minoria entre os intenautas, ela frisa, dizendo-se satisfeita e feliz com a repercussão do vídeo.
“Como se lutar por direitos iguais significasse ser de esquerda. Em nenhum momento nenhuma bandeira foi levantada”, reitera a atriz, para quem o vídeo é uma armadilha do tipo “pesca machista”. “E eles caem nessa rede, como misóginos e até como xenófobos, querendo diminuir a gente como mulher”, diz.
Para finalizar, Livia ainda dá um conselho para os assessores de Temer. “Pô, esse assessor aí, da Presidência, vamos dar uma estudada… Em respeito à própria mulher deles, sabe? Em respeito à mãe deles, a todas nós. Uma fala um pouco melhorzinha para um dia que não é em homenagem à mulher; é um dia de luta, que resolveram fazer porque mulheres foram queimadas em uma fábrica, por exigir direitos iguais. Não é maravilhoso esse dia”, arremata, referindo-se ao 25 de março de 1911, quando um dos mais graves incêndios da história de Nova York matou 146 trabalhadores, a maioria costureiras, devido às más condições de conservação de uma fábrica têxtil. A tragédia foi incorporado ao imaginário coletivo como uma das razões para os protestos do Dia Internacional da Mulher.
“Ele [Temer] afrontou toda uma história de luta da mulher”, protesta Livia.
Abaixo, para relaxar, um pouco da banda Lírios na Lama – “uma homenagem ao brega”, nas palavras de Lívia. O Congresso em Foco adverte: falta de noção e senso de humor faz mal à saúde.