Um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa, o juiz eleitoral do Maranhão Márlon Reis virou alvo de uma série de críticas disparadas por deputados na última terça-feira (10), no plenário da Câmara. Na ocasião, o presidente da Casa, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), anunciou que vai protocolar uma representação no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contra o magistrado por conta do livro O nobre deputado, a ser lançado oficialmente no dia 27 deste mês, em São Paulo (SP).
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Em entrevista exclusiva ao Congresso em Foco, Márlon se diz surpreso com a tentativa de intimidação feita pelos deputados. “A partir das informações [apresentadas na reportagem e no livro] sobre parlamentares eleitos com compra de votos, a Câmara deveria ter anunciado medidas para evitar isso”, disse o juiz, um dos coordenadores do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE).
A obra surgiu a partir de pesquisa para a tese de doutorado do juiz, que pretende apresentá-la ainda neste ano à Universidade de Zaragoza, na Espanha. A indignação dos deputados veio à tona por conta de uma reportagem baseada no livro e exibida no programa Fantástico, da TV Globo, no último domingo (8).
No livro, o juiz usou um personagem fictício chamado Cândido Peçanha, um deputado corrupto e corruptor que se aproveita de um sistema eleitoral falho. Na magistratura há mais de 17 anos, Márlon Reis sustenta estar exercendo, por meio da obra, o “direito à liberdade científica” e diz que suas críticas são dirigidas a uma parte dos deputados, os que se elegem por meio de desvio de recursos e de abuso de poder econômico, e não à toda Câmara dos Deputados.
Márlon Reis diz que os deputados que o criticaram não leram o livro. E reforçou que não fez “nenhum tipo de generalização”. “Não digo que maioria dos deputados tenha sido eleita de forma corrupta. Não sei dizer quantos”.
Excedente e anonimato
PublicidadeSob a condição de anonimato, os entrevistados por Márlon informaram que vários parlamentares, por exemplo, apresentam emendas ao Orçamento da União e, depois, exigem das prefeituras beneficiárias um “excedente” para si. Márlon não menciona nomes dos políticos envolvidos em casos de corrupção. O juiz afirma que não pode fazer isso por causa do pacto pelo anonimato com suas fontes. “Não estou denunciando um ou dois deputados. Estou denunciando o sistema eleitoral que permite a eleição de desonestos”.
Márlon Reis diz que aceita prestar informações aos deputados na Câmara caso seja convidado. Ele adianta que pode dar detalhes sobre os fatos, mas sem revelar nomes, como defenderam os deputados indignados. “Mostrarei tudo o que foi descoberto. Posso apresentar, por exemplo, transcrições de depoimentos”, disse o juiz.
Pesquisa e ficção
O juiz mantém todas as afirmações que fez à emissora de televisão, mas reforça que não é representante da TV Globo. “Tudo o que eu falei e apareceu na entrevista, eu mantenho. Até porque todas as minhas observações e conclusões decorrem de pesquisa. Agora, não sou porta-voz da Globo para defender a matéria. Posso defender o meu livro e minha participação na matéria”.
Ele reforça que a pesquisa resultou em uma obra de ficção. “O livro não é jurídico, não é da ciência política, mas uma obra de ficção. O objetivo não é denunciar pessoas, mas os pontos frágeis do sistema. Por isso há um personagem fictício que permite que a sociedade visualize o tipo de político que estou retratando”.
Veja abaixo a entrevista do juiz ao Congresso em Foco:
Congresso em Foco – Como o senhor avalia a reação da Câmara?
Márlon Reis – Não houve calúnia. É uma reação que não me preocupa. É impossível alguém ser punido por conceder uma entrevista, publicar um livro, emitir sua opinião, fazer pesquisa. Não me pronunciei como juiz, mas como cidadão e pesquisador. Sou estudante de doutorado em sociologia jurídica e instituições políticas e realizo pesquisa há vários anos sobre comportamento político no Brasil com ênfase na questão de compra de votos. A minha fala é de alguém que conhece o que está falando. O Congresso deveria ter buscado um meio de anunciar medidas para debelar a compra de votos e não anunciar a tentativa de intimidação e perseguição contra quem se pronunciou de forma absolutamente livre e alicerçado na liberdade de expressão.
A partir das informações de que há parlamentares eleitos com base na compra de votos, a Câmara deveria ter anunciado a adoção de medidas para evitar que isso aconteça. E não anunciado perseguição a quem demonstrou que essas coisas acontecem. Então, em nenhum momento, eu generalizei. Isso é uma afirmação falsa. Não fiz nenhum tipo de generalização. O que estou afirmando, no livro O nobre deputado, é que parte dos deputados foi eleita de forma antidemocrática, com base no abuso de poder político ou de desvio de recursos de governo. Isso eu faço com base em pesquisa sociológica. Após levantar dados tão duros e cruéis, decidi que não era justo permitir que isso virasse apenas um volume arquivado na prateleira de uma universidade. Decidi levar essas informações a público para atingir o número máximo de pessoas. O Cândido Peçanha, deputado fictício que protagoniza o livro, é uma representação dos políticos desonestos que precisam ser afastados do Parlamento. Não é uma representação de todos os deputados, mas de um tipo de parlamentar descrito no livro. Por isso, não é justo e nem correto afirmar que eu tenha generalizado.
Já é de conhecimento geral que empreiteiras financiam com a finalidade de obter benefícios indevidos e já está demonstrado em diversas pesquisas acadêmicas. A relação antirrepublicana entre empresas e candidatos apoiados por elas já está identificada em pesquisa. Então, todas essas informações deveriam levar o Parlamento a anunciar um pacote de medidas para evitar que isso continue acontecendo e não a reagir da forma eloquente como fizeram contra mim.
Os deputados reclamaram que o senhor não cita o nome de ninguém. O senhor poderia citar nomes?
Fiz isso de propósito. Não estou denunciando um ou dois deputados. Estou denunciando o sistema eleitoral que permite a eleição de deputados desonestos. E deputados desonestos aprenderam a utilizar esse sistema para serem eleitos. Por isso, o personagem é fictício. Ele serve para demonstrar as fragilidades do sistema. É por isso que é muito preocupante que as críticas tenham sido feitas de forma tão acentuadas por pessoas que nem sequer leram o livro. Pessoas que não sabem qual o propósito do livro decidiram representar contra mim no CNJ por conta da redação de um livro que eles não leram. Eu sinceramente fiquei muito surpreso [com as críticas]. O personagem não é fictício para ocultar alguém que deva ser denunciado. É um personagem para ajudar os brasileiros a compreenderem quais são as falhas do sistema. A minha denúncia se refere ao sistema eleitoral vigente, que é ruim, está defasado, não corresponde ao Brasil do século 21 e contribui para que tenhamos uma política permeável à participação de pessoas que praticam atos ilegais para chegar ao poder. De maneira alguma isso representa uma generalização.
O senhor diz que se deparou, na pesquisa, com vários casos de corrupção. Chegou a encaminhar ou vai encaminhar algum para o Ministério Público, por exemplo?
De maneira nenhuma. Eu estava fazendo investigação sociológica, pesquisa científica. Seria antiético, de minha parte, revelar o teor dessas conversas. Como cientista social, afirmei aos meus entrevistados que eles estariam amparados pelo manto do anonimato e que as informações só teriam utilidade acadêmica e que não seriam reveladas, inclusive sob pena inclusive de colocar em risco a vida dessas pessoas. Não se trata de depoimentos que colhi como magistrado. Foram entrevistas feitas por um cientista social com os privilégios da investigação científica. Embora não contenha denúncias contra pessoas, o livro vai facilitar a identificação, pelo Ministério Público e pela Justiça, da prática de atos de corrupção eleitoral.
O livro não é jurídico, não é da ciência política, mas uma obra de ficção. O objetivo não é denunciar pessoas, mas os pontos frágeis do sistema. Por isso há um personagem fictício que permite que a sociedade visualize o tipo de político que estou retratando.
Atualmente, o Ministério Público e a Justiça ainda têm dificuldades para identificar e comprovar corrupção eleitoral?
Sim. Muita. O presidente da Câmara, Henrique Alves, insistiu que deputados não executam nada [obras, por exemplo]. De acordo com meus entrevistados, vários parlamentares exigem do Executivo, as prefeituras que recebem o dinheiro das emendas [apresentadas pelos parlamentares ao Orçamento da União], um excedente. Daí o superfaturamento ou que a obra seja feita de forma inadequada para sobrar dinheiro que vai voltar para os deputados. O dinheiro vai todo para o Executivo mas, quando chega na prefeitura, o prefeito tem o pacto de repassar pelo menos 20% do montante ao deputado. Não estou dizendo que todos fazem isso. Mas, conforme a minha pesquisa, há deputados que fazem. O dinheiro é repassado em espécie para não permitir a fiscalização. Só uma operação policial muito sofisticada para conseguir flagrar essa situação.
O senhor vai tomar alguma providência diante da reação da Câmara ou vai aguardar notificação do CNJ se houver?
Eu respeito a manifestação da Câmara, mas, para mim, não muda nada. Vou continuar com minha agenda normal. Farei o lançamento oficial do livro. Se a Câmara protocolar a representação, verei as medidas adequadas. Tenho 17 anos na magistratura, nunca recebi uma advertência e nenhuma outra punição. Respondi a inúmeras representações porque sempre fiz o que estou fazendo. Todas foram arquivadas porque não havia irregularidades. Essa [da Câmara] é mais uma delas. Tenho certeza de que não serei punido por ter publicado material de uma pesquisa.
O vice-presidente da Câmara, deputado Arlindo Chinaglia, sugeriu que o senhor vá à Casa para conversar com eles e apresentar nomes de envolvidos em casos de envolvidos em casos de corrupção. O senhor aceitaria essa proposta?
A Câmara é o centro da democracia. Tenho alta admiração pela Câmara. Já estive muitas vezes na Câmara para ser ouvido. Já participei de audiências públicas e reuniões com parlamentares. Vou falar sobre o livro quando quiserem. Só não revelarei os dados irreveláveis por conta da maneira como foram coletados. Mas mostrarei tudo o que foi descoberto. Posso apresentar, por exemplo, transcrições de depoimentos. O juiz Márlon Reis julga casos. Mas o pesquisador Márlon Reis está preocupado com as fragilidades do sistema. Enfatizo que não generalizei, estou apresentando fragilidades que têm permitido que uma parte dos deputados seja eleita de forma não republicana. E também não estou recuando na minha posição. Acredito no Parlamento e estou falando em defesa do Parlamento.
Ao menos um dos deputados disse que o senhor achacou a Câmara.
Não achaquei. Protegi. Eu lancei um alerta de proteção. Quem achaca a Câmara é quem pratica corrupção. Quem está afetando a imagem da Câmara não sou eu. A imagem da Câmara está afetada por um descompasso entre os que estão lá e a sociedade. Esse descompasso decorre do fato de termos um sistema eleitoral ruim que precisa ser superado.
Na sua avaliação, das possibilidades para reforma política, quais as medidas mais urgentes?
Defendo a proibição de doações por empresas. Elas são a porta da ilicitude. O começo da corrupção política está nas doações empresariais. Defendo modelo de votação em dois turnos para o Parlamento, para se votar primeiramente no partido e depois em um pequeno número de candidatos para compor as cadeiras em proporção obtida por cada partido. Mas o principal é acabar com as doações empresariais. A maioria do próprio Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu que esse tipo de doação é até inconstitucional.
Henrique Alves afirmou que “a reportagem divulgada pelo Fantástico desestimula o exercício da cidadania e, ao contrário do seu objetivo, reforça a ideia de que a política de nada serve à população brasileira”. Como o senhor vê essa opinião?
O que desestimula a participação política e a cidadania são os desvios dos líderes políticos. Minha fala motiva aqueles que acreditam na melhoria vejam exatamente onde estão as práticas que queremos superar para, com mais facilidade, descobrir como vamos debelá-las.
Tudo o que eu falei e apareceu na entrevista, eu mantenho. Até porque todas as minhas observações e conclusões decorrem de pesquisa. Agora, não sou porta-voz da Globo para defender a matéria. Posso defender o meu livro e minha participação na matéria.
Ao menos um deputado o acusou de ter feito, na reportagem, propaganda do livro. Como o senhor responde a isso?
Isso não merece resposta.
Os deputados demonstraram muita indignação. No entanto, em geral, a figura do parlamentar está realmente associada à corrupção por conta do número de escândalos que acontecem no país frequentemente. Como o senhor avalia isso?
A legislação é frágil e facilita tudo que foi mostrado na reportagem. Não digo que maioria dos deputados tenha sido eleita de forma corrupta. Não sei dizer quantos. Mas se houvesse apenas um eleito dessa maneira, como conto no livro, isso já deveria ser motivo para uma grave comoção social. Um parlamentar não é uma pessoa comum. Ele é representante da sociedade.
O senhor considera que a Câmara não anuncia medidas para alterar esse quadro porque não há interesse em mudar o sistema já que os parlamentares acabam se beneficiando desse sistema?
Concordo com isso. Inclusive ouvi de um deputado federal da atual legislatura que não houve impasse sobre reforma política. Mas, sim, uma decisão de não fazer. A maioria quis não fazer e manter as coisas como elas estão. Uma parte pode não querer reforma política porque se utiliza do modelo para obter mandato de forma ilegal. Outra parte não obtém o mandato de forma ilegal, mas já está acostumada com as regras. De fato, isso só vai ser rompido quando a sociedade brasileira perceber o que está em jogo. Na verdade, há uma inversão de valores. Alguns parlamentares agem como se eles fossem um presente para a sociedade e que a sociedade deve servi-los. Mas, na verdade, o Parlamento e o sistema eleitoral devem estar submetidos ao desejo da sociedade. A sociedade precisa despertar para cobrar. A lei da Ficha Limpa só foi aprovada por pressão popular. E a mesma coisa vai ser com a reforma política. Um deputado disse que não foi a sociedade que fez a lei da Ficha Limpa, mas o Congresso. Ora. Se não fossem as assinaturas coletadas e o apoio nas redes sociais e dos meios de comunicação e de outros, a lei não existiria. Não foi uma iniciativa do Parlamento. Só foi aprovada por causa da força da sociedade.
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