Em seu primeiro compromisso internacional como presidenta, na Argentina, Dilma Rousseff deixou claro o papel dos direitos humanos em sua gestão. Na ocasião, Dilma, torturada na ditadura militar, encontrou-se com representantes do grupo Mães e Avós da Praça de Maio, senhoras que tiveram familiares vitimados pelo regime de exceção no país vizinho. O recado de Dilma era claro: as arbitrariedades praticadas durante a ditadura, das quais ela mesma foi vítima, deveriam ser detalhadas e tornadas públicas, em nome da memória recente do país. O tema, porém, é delicado, e parece haver uma grande distância entre o desejo manifesto e o que efetivamente virá a ser feito. Nem tudo o que se praticou de abuso e de ilegal deverá vir à tona, se depender do colegiado prestes a ser criado com o objetivo de investigar os “anos de chumbo”.
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Trata-se da Comissão Nacional da Verdade, um grupo a ser composto por sete nomes de livre indicação da Presidência da República. O colegiado terá a responsabilidade de, no prazo de dois anos contados a partir de sua instalação, elaborar um “relatório circunstanciado” sobre registros de violação de direitos individuais e casos de desaparecimento ou morte de opositores do regime militar. A proposta ainda amplia o período da investigação. O país viveu sob ditadura militar entre 1964 e 1985, mas o período proposto para a apuração é compreendido entre 1946 e 1988. Fica compreendido, assim, o período de democracia que vai do fim da ditadura de Getúlio Vargas (em 1945) até o golpe militar em 1964, e parte do governo José Sarney (que foi de 1985 a 1989). “Atividades realizadas, fatos examinados, conclusões e recomendações” devem constar do documento final. Todo o acervo documental e de multimídia preparado pela comissão será encaminhado ao Arquivo Nacional e aberto ao público.
Isso, porém, não significa que os documentos que forem analisados pela comissão se tornarão públicos. O problema, alegam familiares de vítimas da ditadura e representantes de entidades, é que os procedimentos de análise serão sigilosos durante os 24 meses de funcionamento da comissão. O comissariado terá acesso irrestrito a todos os tipos de documentos oficiais, independentemente do grau de sigilo, mas estão proibidos de revelar seu conteúdo. Ou seja, todo o procedimento de pesquisa e compilação de dados, reclamam os críticos da matéria, ficará restrito a apenas sete pessoas, enquanto milhares de outras diretamente afetadas pelo assunto ficarão apartadas da apuração. Em suma, ainda que venham a surgir para a análise da comissão os célebres arquivos secretos da ditadura, eles continuarão secretos.
A polêmica está no artigo 4º, parágrafo 2º: “Os dados, documentos e informações sigilosos fornecidos à Comissão Nacional da Verdade não poderão ser divulgados ou disponibilizados a terceiros, cabendo a seus membros resguardar seu sigilo”. Logo adiante, no artigo 5º, o texto define que as atividades executadas na comissão “serão públicas, exceto nos casos em que, a seu critério, a manutenção de sigilo seja relevante para o alcance de seus objetivos ou para resguardar a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem de pessoas”. Quem violar as regras de privacidade do colegiado, lembra o relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), será punido pela legislação vigente.
Erro de interpretação
Ciente da polêmica que os artigos sobre sigilo já começam a causar, Aloysio Nunes Ferreira garante que está havendo um erro de interpretação sobre o que diz a lei. O que se deseja, diz ele, é apenas garantir a possibilidade de manter algum fato em sigilo para não atrapalhar o desfecho das investigações. “O sigilo no texto tem de ser visto no conjunto. O que o texto diz é que, durante a investigação, pode haver momentos em que a comissão não revele documentos sobre fatos que ela está investigando. Isso é normal em qualquer investigação”, disse ontem (terça, 18) Aloysio ao Congresso em Foco.
Se hoje Aloysio faz oposição a Dilma, nos Anos de Chumbo eles eram aliados na ideia de fazer uma revolução armada no país. Na época, Aloysio deixou o Partido Comunista Brasileiro para ingressão na Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo de esquerda que ingressou na luta armada. Com o codinome de “Mateus”, Aloysio participou do “assalto ao trem pagador”, uma das mais ousadas ações da guerrilha no período, quando o grupo guerrilheiro interceptou e roubou um trem com o dinheiro do pagamento de trabalhadores na antiga estrada de ferro Santos/Jundiaí.
Lembrando que as atividades da comissão ganharão publicidade com o documento final. Além disso, ele confia na aprovação da Lei de Acesso a Informação Pública, definida em projeto já aprovado na Câmara e à espera de votação no Senado, que deve vedar “qualquer grau de sigilo” a documentos oficiais que versem sobre direitos humanos. Por enquanto, porém, como tem mostrado o Congresso em Foco, a tramitação da Lei de Acesso vem sendo barrada por ações do senador e ex-presidente Fernando Collor.
Documentos secretos: a discussão promete ser longa
“O projeto [da comissão] tem uma perspectiva de deslindar de maneira mais ampla os mecanismos, as conexões da máquina repressiva com as instituições da sociedade, o meio empresarial etc”, acrescentou Aloysio. O senador pensou em alterar o período de análise dos atos arbitrários para 1964-1988, mas desistiu da ideia. A preocupação do relator, compartilhada por familiares de vítimas da ditadura e setores da sociedade, é que o período mais amplo a ser investigado tirasse o foco dos trabalhos, uma vez que as mais graves violações dos direitos humanos foram registradas a partir de meados dos anos 1960.
Emendas
Aloysio disse não se importar com a possibilidade de a CCJ, com maioria governista, aprovar urgência para a votação em plenário. “Estou pronto para o debate.” O senador paulista informou ainda que apresentará hoje (quarta, 19) seu relatório na CCJ, e que nenhum senador apresentou emendas ao texto principal, por ele classificado como “bom”. Ontem (18), oito sugestões, que podem ser formalizadas em emendas, foram apresentadas em audiência pública sobre o assunto realizada na Comissão de Direitos Humanos (CDH). Foi quando entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil e convidados como João Vicente Goulart, filho do ex-presidente da República João Goulart (deposto no golpe de 64), criticaram, além da manutenção de sigilo, o fato de a comissão ter prazo de apenas dois anos – suficientes, defende Aloysio.
“Essa comissão não vai começar do zero. E acho importante que ela esteja circunscrita ao mandato da presidente Dilma Rousseff, porque a presidente tem demonstrado muito empenho em seu funcionamento, no seu êxito. Além do mais, a comissão não vai dar a última palavra sobre isso nem vai produzir uma verdade oficial”, observa o tucano, para quem há a possibilidade de prorrogação do prazo ou, na hipótese da insuficiência dos trabalhos, de que instrumentos legislativos possam completar a tarefa da comissão – para tanto, ele diz considerar mesmo as criticadas medidas provisórias, “se houver necessidade de prorrogar”.
Na conta da Casa
O trabalho da Comissão da Verdade, classificado como “serviço público relevante”, será remunerado (R$ 11.179,36 mensais) e amparado pelo suporte técnico, administrativo e financeiro da Casa Civil, em cujo âmbito a comissão funcionará. Os integrantes terão ainda, como estabelece o parágrafo 3º do artigo 7º, direito a passagens aéreas e diárias de hospedagem “para atender aos deslocamentos, em razão do serviço, que exijam viagem para fora do local de domicílio”.
Para compor o grupo, diz o projeto, o indicado deve ser brasileiro “de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificados com a defesa da democracia e institucionalidade constitucional, bem como o respeito aos direitos humanos”. Estão impedidos de fazer parte da comissão dirigentes de partidos políticos (à exceção dos membros honorários); ocupantes de cargos em comissão ou função de confiança, em qualquer nível da administração pública; ou aqueles que não ostentem imparcialidade em relação ao propósito do trabalho (militares, ex-militantes comunistas, familiares de vítimas etc).
Íntegra do Projeto de Lei 7673/2010 (no Senado, Projeto de Lei da Câmara 88/2011)
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