Servidores públicos e trabalhadores do setor privado devem ser tratados igualmente em relação às regras de aposentadoria? Ou o funcionalismo, por suas características próprias, merece um tratamento especial? Qual a forma tecnicamente mais correta e socialmente mais justa de lidar com a questão?
Não se trata de uma discussão teórica, mas de algo que está à espera de uma decisão iminente dos parlamentares. O tema é regulado pelo Projeto de Lei (PL) 1992/2007 (acesse aqui a íntegra e veja como está a tramitação), que muda radicalmente a Previdência Social e o serviço público brasileiros. Enviado por Lula ao Congresso Nacional há quatro anos, o projeto desde então dormitava esquecido nas masmorras do Legislativo, para as quais fora relegado pela ação diligente da própria base governista, liderada pelo PT.
Os deputados da base não queriam pagar o preço do desgaste com as entidades representativas dos servidores, que são praticamente unânimes na condenação da proposta. E também não houve voz na oposição que ousasse resgatar a ideia do limbo.
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Foi isso o que fez, no entanto, o ministro da Previdência, Garibaldi Alves Filho. Ele não só tem obtido enorme sucesso na sensibilização de áreas do governo – inclusive, ao que consta, a própria presidenta Dilma – para a necessidade de aprovar já o PL 1992 como conquistou um aliado estratégico para auxiliá-lo nesse plano: o presidente da Comissão de Trabalho da Câmara dos Deputados, deputado Silvio Costa (PTB-PE), homônimo do acima assinado.
Avocando a si a relatoria da matéria, Silvio Costa produziu parecer favorável ao projeto, e, embora poucos tenham se dado conta disso, foi por um triz que a Comissão de Trabalho deixou de aprová-lo, no apagar das luzes do primeiro semestre legislativo do ano. Isso só não ocorreu porque representantes dos servidores obtiveram a providencial ajuda de parlamentares que integram a comissão para evitar que o assunto fosse colocado em votação.
Mas o PL 1992 está entre as prioridades da pauta da reunião que a comissão realizará no próximo dia 3, a primeira após o fim do recesso do Congresso. E a polêmica tende a se intensificar neste semestre, quando a proposta poderá chegar à análise do Plenário da Câmara e, se aprovada, ao Senado.
O projeto
Basicamente, o projeto estende ao funcionalismo federal o teto para a contribuição e para pagamento de aposentadorias e pensões válido para os trabalhadores da iniciativa privada, que hoje é de exatos R$ 3.691,74. Para ter uma aposentadoria acima desse valor, o servidor deverá fazer uma contribuição complementar, em favor de um novo fundo de pensão, também criado pelo PL – a Fundação de Previdência Complementar do Serviço Público Federal (Funpresp).
Essa mudança não se fará abruptamente. Será garantida aos atuais funcionários públicos a possibilidade de se aposentar pelas regras atuais, que lhes garantem um benefício muito próximo à remuneração da ativa. E o governo contribuirá para a aposentadoria dos futuros servidores, ajudando a capitalizar o Funpresp, ao qual também poderão aderir servidores dos estados e dos municípios.
Argumentos contrários
Um dos aspectos mais polêmicos da proposta é que, ao buscar a isonomia de tratamento entre trabalhadores dos setores público e privado, ela atinge o imaginário associado àquele que talvez seja no momento o maior sonho de consumo da classe média brasileira – o acesso ao serviço público. Estima-se que o Brasil possua perto de 12 milhões de pessoas que aspiram a um emprego público, especialmente na administração federal, onde os salários são mais altos e algumas carreiras chegam a ter vencimentos iniciais acima de R$ 20 mil por mês.
Ressalte-se ainda que nos últimos anos a administração pública ganhou muito em eficiência ao absorver funcionários concursados, bem pagos, com estabilidade de emprego e uma regra de aposentadoria extremamente vantajosa. Os progressos foram notáveis na Polícia Federal, no Ministério Público, no Judiciário e em várias áreas dos três poderes beneficiadas pela entrada em cena de novas gerações de servidores, nomeados em razão de seus méritos e não de velhas pragas nacionais, como o apadrinhamento político, o conluio com esquemas de corrupção e o nepotismo.
Para os críticos dos PL 1992, ele colocaria tais avanços em risco. “Não estamos advogando em interesse próprio, já que os atuais servidores não serão atingidos”, afirma Roberto Kupski, secretário-geral do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate). “Estamos preocupados com o futuro do serviço público e, portanto, do país. O Chile fez essa experiência de privatizar a previdência dos servidores e não deu certo”.
Kupski prossegue: “Não dá para tratar igualmente os servidores e os demais trabalhadores, como pretende o governo. O funcionalismo não tem FGTS, não tem a flexibilidade para mudar de emprego ou negociar salários com as empresas, não possui ingerência sobre as regras da carreira, que são definidas pelo Executivo e em última instância pelo Legislativo. São diferenças gritantes. O PL 1992 elimina um grande atrativo para o serviço público, que é uma aposentadoria digna, e é um desestímulo à qualificação. Hoje, o Estado pode buscar os melhores. Os números mostram que nem mesmo os supostos ganhos fiscais a serem obtidos justificam a mudança”.
De acordo com o dirigente da Fonacate, outro aspecto torna mais injusto o projeto: os servidores de carreira, que contribuem hoje com 11% da remuneração total que recebem, serão punidos por problemas que eles não criaram. Entre eles, o fato de a Previdência durante muito tempo não ter recebido do Tesouro Nacional os recursos referentes ao regime previdenciário do funcionalismo e a incorporação à Previdência Social, determinada pela Constituição de 1988, de segmentos de assalariados que recebem hoje benefícios para os quais não contribuíram ao longo de sua vida ativa (sobretudo, os trabalhadores rurais e os beneficiários do maior trem de alegria da história do Brasil, aquele que tornou estáveis mais de 600 mil celetistas que então trabalhavam no serviço público).
Argumentos favoráveis
Tudo estaria perfeito não fossem os bons argumentos oferecidos pelo governo. O mais impactante deles tem a ver com a atual distribuição dos gastos previdenciários. Segundo o secretário de Políticas de Previdência Complementar, Jaime Mariz de Faria Júnior, em 2010 faltaram R$ 42 bilhões para complementar as despesas feitas pela Previdência Social com cerca de 28 milhões de aposentados e pensionistas do setor privado e R$ 52 bilhões para cobrir o déficit com o pagamento de 950 mil aposentados do serviço público.
“Gastamos bem mais para atender a um número 30 vezes menor”, enfatiza Jaime Mariz Júnior. “Para se ter uma ideia de grandeza, lembro que no mesmo ano todo o orçamento do Ministério da Educação foi R$ 60 bilhões. O do Ministério da Saúde, R$ 70 bilhões. E o mais grave é que o déficit dos benefícios no serviço público cresce 10% a cada ano. É da natureza humana ter medo do diferente. Mas este é o momento de fazer a mudança para evitar no futuro que se cortem benefícios vigentes, como a Europa está fazendo hoje para enfrentar a crise previdenciária”.
Com o redesenho feito pelo PL 1992, argumenta o secretário de Previdência Complementar, desarma-se uma bomba-relógio cujo potencial explosivo pode ser avaliado de outra forma: “Temos hoje 1 milhão 111 mil servidores na ativa contribuindo, e até 2016 de 40% a 50% deles poderão se aposentar. E a situação atual já é muito preocupante. Para que o sistema fosse sustentável, deveria haver quatro servidores na ativa contribuindo para cada aposentado. E essa relação já é atualmente 1,17. É preciso agir imediatamente”.
Jaime acrescenta que o PL 1992 não trará prejuízos ao funcionalismo: “Para os servidores atuais, não muda nada porque a regra só valerá para aqueles que prestarem concurso após a publicação da lei. Para os novos servidores, também não haverá perdas. Fizemos várias simulações, e elas demonstram que os futuros servidores terão benefícios iguais ou melhores do que os atuais. Será como ocorre hoje com os funcionários da Petrobras, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica que possuem fundos de pensão para complementar sua aposentadoria. Pergunte a um funcionário da Petrobras se ele está insatisfeito com a aposentadoria”.
De fato, admite ele, o projeto não vai gerar ganhos imediatos para as contas públicas. “O efeito será a longo prazo, quando os novos servidores começarem a se aposentar. Até lá, as despesas da Previdência inclusive aumentarão porque teremos que repassar à Funpresp a parcela de responsabilidade do governo, referente à complementação da aposentadoria dos novos servidores”.
Há, enfim, o projeto de país implícito no PL 1992. Para os críticos da proposta, seria uma visão liberal, de desmonte do Estado e de privatização de algo (a complementação da aposentadoria) que deveria permanecer público. Para os seus defensores, trata-se de criar poupança pública para investir em áreas prioritárias, ora carentes de recursos, como educação, saúde, tecnologia, segurança e infraestrutura. Nesse último caso, sobretudo, sustenta-se que o Funpresp – concebido para se tornar o maior fundo de pensão do Brasil e, provavelmente, da América Latina – poderia ter um papel fundamental no financiamento de obras.
Bancadas divididas
Ingrediente extra, que torna ainda mais polêmica a matéria: ela já divide opiniões até mesmo dentro das diversas bancadas partidárias, inclusive no principal partido do governo. Foi um deputado petista, Roberto Policarpo (DF), quem articulou a retirada do PL 1992 da pauta da Comissão de Trabalho, evitando uma votação na qual sua aprovação era praticamente certa. E foram três ministro petistas – Guido Mantega, Paulo Bernardo e o ex-presidente nacional da CUT Luiz Marinho – os signatários da exposição de motivos apensada ao projeto quando do seu encaminhamento ao Congresso. Resta-nos torcer para que os parlamentares façam sobre o assunto um debate com a qualidade que o tema exige!
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