Celso Lungaretti (*)
Na última quarta-feira (18), a prisão do escritor italiano Cesare Battisti em terras brasileiras atingiu a marca de dois anos.
Detido em Copacabana (RJ) por determinação do Supremo Tribunal Federal, que atendeu prontamente a uma solicitação do governo italiano, Battisti teve de aguardar quase 21 meses até que o assunto fosse decidido no âmbito do Executivo, com a histórica decisão do ministro Tarso Genro de conceder-lhe refúgio humanitário, resistindo à avassaladora pressão italiana, secundada por veículos reacionários da mídia brasileira.
Ao justificar sua medida, Genro destacou que, no clima de caça às bruxas decorrente do assassinato de Aldo Moro pelas Brigadas Bermelhas, “o Estado italiano (…) [implantou] ‘exceções’ (…) que reduziram prerrogativas de defesa dos acusados de subversão e/ou ações violentas, inclusive com a instituição da delação premiada, da qual se serviu o principal denunciante” de Battisti.
Para respaldar sua afirmação de que a repressão aos ultras extrapolou flagrantemente os limites de uma democracia, Genro citou um trecho clássico do grande jurista italiano Norberto Bobbio: “A magistratura italiana foi então dotada de todo um arsenal de poderes de polícia e de leis de exceção (…) [que] garantia toda uma estratégia de ‘arrastão judiciário’ a permitir o encarceramento com base em simples hipóteses, e isto para detenções preventivas, permitidas (…) por uma duração máxima de dez anos e oito meses”.
Tanto quanto o enquadramento de Battisti numa lei promulgada anos depois dos crimes a ele atribuídos e aplicada com efeito retroativo, a hipótese de um cidadão permanecer preso preventivamente durante dez anos e oito meses (!) comprova que se praticavam as piores aberrações jurídicas na Itália dos anos de chumbo.
E as agressões aos direitos constitucionais dos réus não se limitavam ao recinto dos tribunais, ressaltou o ministro da Justiça: “É público e incontroverso, igualmente, que os mecanismos de funcionamento da exceção operaram, na Itália, também fora das regras da própria excepcionalidade prevista em lei”.
Trocando em miúdos, os acusados de subversão eram torturados. Isto foi atestado por relatórios da Anistia Internacional e do Comitê europeu para a prevenção da tortura, motivando diversos países, inclusive não europeus, a concederem asilo político a ativistas italianos.
O ministro simplesmente pulverizou a tese oportunista a que a Itália recorreu quando tomou conhecimento de que o Brasil não extraditava perseguidos políticos: alegar que Battisti cometera crimes comuns, embora o tivesse enquadrado numa lei promulgada para reprimir a subversão e o houvesse condenado explicitamente por crimes políticos.
Assim, citou Genro, as próprias sentenças condenatórias especificavam que todos os tipos penais nos quais Battisti foi enquadrado eram integrantes de “um só projeto criminoso, instigado publicamente para a prática dos crimes de associação subversiva constituída em quadrilha armada, de insurreição armada contra os poderes do Estado, de guerra civil e de qualquer maneira, por terem feito propaganda no território nacional para a subversão violenta do sistema econômico e social do próprio País”. Mais claro, impossível.
Conflito de poderes
Com a decisão de Genro, impunha-se a imediata libertação de Battisti pelo STF, pois já ficara preso tempo demais no Brasil por fatos alheios ao Brasil; e a extinção do processo de extradição por parte do Supremo que, em episódios congêneres, havia reconhecido a competência do Executivo para conceder ou negar o refúgio.
É o que determina a Lei nº 9.474, de 22/07/1997, conhecida como Lei do Refúgio:
Art. 12. Compete ao Conare (…) analisar o pedido e declarar o reconhecimento, em primeira instância, da condição de refugiado;
Art. 29. No caso de decisão negativa, (…) [cabe] direito de recurso ao Ministro de Estado da Justiça;
Art. 31. A decisão do Ministro de Estado da Justiça não será passível de recurso…
O STF, entretanto, preferiu manter Battisti preso, admitir a Itália como parte num processo brasileiro (!) e, segundo a mídia, está considerando a possibilidade de usurpar do Executivo a prerrogativa que lhe confere a Lei do Refúgio:
Art. 33. O reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio.
Uma primeira tentativa de anular, na prática, o Artigo 33 da Lei do Refúgio foi levada a cabo em 2007 pelo presidente do STF Gilmar Mendes, no caso de Olivério Medina (ex-integrante da guerrilha colombiana), do qual foi relator. Propôs que o Supremo avocasse a definição sobre se eram políticos ou comuns os crimes imputados a Medina. Em vão: todos os demais ministros votaram contra seu subterfúgio e a favor do acatamento pleno da Lei do Refúgio.
Tomar decisão diametralmente oposta, sob o impacto das ameaças e das declarações insultuosas italianas, seria a pá de cal na credibilidade do STF, tão abalada por uma série de decisões que pareceram beneficiar os poderosos em detrimento da verdadeira Justiça.
E a permanência de Battisti por dois anos já nas prisões brasileiras, em razão de episódios nebulosos ocorridos em 1978/79 do outro lado do Atlântico, é simplesmente kafkiana.
Nenhum cidadão deveria passar pela via crucis a que Cesare Battisti é submetido pelo letárgico Estado brasileiro e em função dos critérios duvidosos adotados por um alto magistrado que, a cada declaração pública, faz crescerem as suspeitas de que lhe falta isenção para julgar personagens de esquerda.
* Jornalista, escritor e ex-preso político e mantém os blogs:
http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/
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