Por Cezar Britto *
Especial para o Congresso em Foco
Não fosse pela presença dos brasileiros e brasileiras que encontramos pelas ruas de São Petersburgo e alguns turistas portando chapéus de frio com símbolos soviéticos, não teríamos percebido que estávamos no centenário da Revolução Bolchevique. Excluo desta anotação inicial a deputada federal Jandira Feghali e os dirigentes do PCdoB que participaram ativamente do encontro de diversos partidos comunistas espalhados pelo mundo.
Segundo os participantes, mais de cento e quarenta partidos comunistas espalhados pelo mundo se reuniram para analisar a conjuntura internacional, a estruturação partidária, o programa de ação e o intercâmbio entre eles. Mas era um encontro restrito aos dirigentes e militantes partidários, o que me excluía da sua participação, restando-nos o acompanhamento por fotos e um belo vídeo em que cantavam, emocionados, o revolucionário Hino da Internacional Socialista.
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Coube-nos, então, a tarefa de descobrir os elementos e os fatos que testemunharam ou influenciaram na revolução que abalou o mundo. E assim começamos na busca dos traços que poderiam identificar a presença revolucionária nos acontecimentos centenários.
Resolvemos, então, visitar o Arco do Triunfo de Narva, erguido pelo czar Alexandre I, para comemorar a vitória russa sobre Napoleão. É que ele também fora palco, anos depois, do massacre de milhares de trabalhadores que, liderados pelo padre Gaspon, marcharam rumo ao Palácio de Hermitage, no que ficou conhecido como “Domingo Sangrento”.
PublicidadeEste fato, que ocorreu em 1905, desencadeou várias greves e manifestos contra o feudalismo russo, fez nascer a ideia dos conselhos operários (sovietes) e, após a Revolta do Couraçado Potemkin, obrigou o czar Nicolau II a convocar eleições para a Duma (parlamento), possibilitando a criação de uma monarquia constitucional parlamentar. Não sem razão se diz que a Revolução Bolchevique teve início na Revolução Russa de 1905.
Aquele espaço físico também testemunhava outro evento intimamente ligado ao desdobramento dos acontecimentos revolucionário, especialmente a face repressora stalinista. É que do Arco de Narva se podia divisar uma grande estátua do popular líder bolchevique Serguei Kirov, apontado como possível sucessor de Stalin, a quem apoiara no processo que consolidou a ascensão do líder georgiano, na derrota de Leon Trotsky, no afastamento de Gregori Zinoviev e de todos revolucionários que discordaram do novo rumo traçado para a Rússia.
O seu assassinato, no dia 01 de dezembro de 1934, fora o pretexto utilizado por Stalin para iniciar os Julgamentos de 1936, promovendo-se os grandes expurgos, as prisões e os assassinatos dos que discordavam da política stalinista, não raro transformando-se em traidores os velhos militantes e revolucionários de 1917. Os tiros que atingiram Serguei Kirov, quando saía do trabalho no simbólico Instituto Smolny, certamente atingiram o destino da Revolução Bolchevique, independentemente da acusação de que fora o próprio Stalin quem ordenara a execução de seu aliado político.
Evidentemente visitamos o Instituto Smolny, até porque fora o local em que se instalara o quartel-general da própria Revolução de Outubro, ponto de encontro e expedição das ordens revolucionárias assinadas por Lênin e demais bolcheviques, sede do Soviete de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado, residência oficial de Lênin no período em que morara em São Petersburgo e, depois, sede do Partido Comunista.
Não se pode esquecer, ainda, que o antigo Instituto de Nobres Donzelas fora o endereço escolhido por Lênin quando desembarcara da Estação Finlândia, retornando do exílio para entrar, em definitivo, na História. Naquele histórico palco revolucionário fora preservado o nome soviético da praça que abriga as estátuas de Karl Marx e Friedrich Engels, mantendo-a como “Praça Ditadura do Proletariado”, espaço obrigatório em todas as cidades soviéticas. Não sem razão, ainda, no Instituto Smolny e na Estação Finlândia encontram-se duas das quatro estátuas de Lênin na cidade que já fora batizada com o seu nome.
Resolvemos, ainda, conhecer o famoso Cruzador Autora, que, em 25 de outubro de 1917, recusou-se a cumprir as ordens dos oficiais czaristas, aderindo, com a força ameaçadora de seu poderio bélico, à Revolução Bolchevique. Perto dali, visitamos o Museu de História Política, antigo palacete da talentosa Mathilde Kschessinska, também famosa por ser a primeira-bailarina do Mariinski (antigo Kirov) e amante do czar Nicolau II.
Ele tinha sido confiscado pelos bolcheviques, transformado na sede de seu partido e, em razão disso, o local que testemunhara a primeira leitura das Teses de Abril, de Lênin. Ironicamente, o lugar em que Lenin falava para as multidões, carregado de seus objetos pessoais, fora transformado, pelo presidente Putin, em um espaço destinado a destruir o legado soviético, destacando-se uma enorme porta de cárcere com Stalin preso, as imagens pesadas, burocráticas e envelhecidas dos líderes comunistas e, embaixo de uma escada, um quarto escuro, pequeno e sujo onde se dizia ser uma antiga moradia na URSS. Confessou-nos a guia, que voluntariamente usava um broche de Lênin, que o museu tinha uma clara função contrarrevolucionária, centrada na política do esquecimento.
Curiosa e historicamente, o legado soviético recebera de Boris Yeltsin e segue recebendo de Vladimir Putin o mesmo tratamento que Joseph Stalin reservara para o legado de Leon Trotsky e demais revolucionários de 1917. É que constatamos, para contrariedade de alguns integrantes da nossa comitiva, o completo apagamento do papel de Trotsky nos atos insurgentes de 1905, na ambiência revolucionária de 1917 que provocara o triunfo do provisório da Revolução Burguesa em fevereiro, na renúncia do czar Nicolau II em março e, finalmente, na vitória da Revolução Bolchevique em outubro.
Pouco se sabia sobre o eloquente intelectual marxista que, à frente do Comitê Militar Revolucionário, anunciou o fim do Governo Provisório de Kerensky, organizou e comandou o Exército Vermelho dos Operários e dos Camponeses e, por isso tudo, foi fundamental para consolidar a revolução na Guerra Civil de 1918/1922 e resistir ao cerco imposto pelos países capitalistas atemorizados com a proposta internacionalista dos comunistas.
E, assim, encerramos a nossa passagem por São Petersburgo, a capital dos czares e palco da Revolução Bolchevique. O nosso próximo destino seria Moscou, a capital dos soviéticos. O que encontraríamos lá? O que estaria programado para o histórico 07 de novembro de 2017? Esquecimento ou comemoração? Estes serão os temas das próximas anotações.
* Colunista do Congresso em Foco, Cezar Britto é advogado e escritor, autor de livros jurídicos, romances e crônicas. Foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e da União dos Advogados da Língua Portuguesa. É membro vitalício do Conselho Federal da OAB e da Academia Sergipana de Letras Jurídicas.
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