Nos anos em que andei de ônibus em Brasília, minha vida foi mais rica. Percebia com calma a cidade, o contato parando de ponto em ponto. Assíduo na linha L2 Sul-Rodoviária , morador que era das quadras 400, fiquei logo amigo do Charles, cobrador da TCB, que não me deixava pagar a passagem. Nunca mais nos vimos. A vida o levou para outros itinerários.
Trabalhava como redator no Setor Bancário Norte, pertinho da Rodô, como a intimamente chamávamos. Valdir, o fotógrafo, saía quase sempre antes do final do expediente. Que é isso, Valdir, já vai? Você sabe que eu tenho aquele compromisso diário com o Velho Barreiro na Rodoviária. Nunca mais vi Valdir.
Na época, sonhador, cheguei até a ensaiar algumas aspirações eleitorais e dizia: minha plataforma política é a plataforma da Rodoviária. Que meus leitores se tornem meus eleitores. Parei por aí.
Enfim, motorizado ou não, a Rodoviária continua fazendo parte do meu caminho. Recentemente fui ao Na Hora tirar passaporte. Sistema fora do ar, o sr. volte mais tarde, por favor. Fiquei por lá, flanando, como tantos outros desocupados que ali deságuam.
Um louco berrava no mezanino. Subi, parei. Para meu espanto, bem articulado, falava coisas com sentido. Ao terminar, criei coragem: Ei, você não é louco, não! E ele: Tá maluco? Eu leio a Zero Hora, assisto todos os noticiários da TV. Mas… e essas roupas, esse sapato enorme? Olha, eu trabalhava num circo. Me largaram aqui, com a promessa que viriam me buscar. Estou esperando. Não quer me pagar um pastel com caldo de cana?
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Claro, tinha que ser pastel com caldo de cana. O nosso prato típico, que consumíamos voltando dos shows e das festas, altas horas. E ouvindo histórias: sabia que antes nesse pastel tinha azeitonas? Tiraram. As sementes arrebentavam com as escadas rolantes. Páginas de um livro bom num tempo em que o medo não fazia parte do nosso cotidiano.
PublicidadeMarco zero, cruzamento que vale por todas as esquinas que Brasília não tem, a Rodoviária é a nossa “rua 24 horas”. Uma cidade rotativa com uma população flutuante de cerca de 700 mil habitantes/dia. Imagine o Plano Piloto sem a Rodoviária. A cidade simplesmente travaria. Pior: não haveria cidade, apenas fileiras de blocos ao longo de uma via expressa.
É o lugar onde Brasília mais se parece uma cidade qualquer, com seu ar de feira, sua informalidade tão brasileira, em claro contraste com o nosso traçado racional e cartesiano. Lucio Costa tinha outros planos para a Rodoviária, mas quando a visitou, nos anos 80, ficou feliz. Viu a população se apropriando daquele espaço, onde os eixos se cruzam e as pessoas se encontram.
Banca de jornais melhor que a da Rodoviária? Talvez a do Aeroporto. Foi na papelaria da Rodoviária que encontrei recentemente a caneta que eu tanto procurava. Uma foto 3×4, tipo lambe-lambe? Só na Rodoviária são oito quiosques. Dizem que apostar na lotérica da Rodoviária dá sorte. Eu até hoje só ganhei experiência. E um dia ainda volto lá pra saborear aquele PF com bife acebolado.
Curioso é que quando mostramos a cidade aos visitantes entramos na Catedral, subimos na Torre de TV, paramos na Praça dos Três Poderes… Mas não incluímos a Rodoviária no roteiro. Deveríamos. De automóvel ou não, somos todos passageiros.
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