Foi pior, muito pior, do que a derrota brasileira por diferença mínima (1 X 2 Uruguai) na final da primeira Copa do Mundo que sediamos, em 1950. Daquela vez jogamos de igual para igual, criamos e perdemos muitas chances de gol, com a partida sendo decidida nos detalhes.
Nesta terça-feira catastrófica para o futebol brasileiro, fomos inteiramente dominados, sofremos goleada ultrajante (1 X 7) e a Alemanha precisou apenas da meia hora inicial para nos nocautear, poupando-se visivelmente no restante do jogo — o que não a impediu de desperdiçar ótimas oportunidades. Os germânicos poderiam, sem muito esforço, ter assinalado uma dezena de tentos.
A responsabilidade imediata, claro, foi do técnico Luiz Felipe Scolari, que convocou e escalou mal, nunca deu organização tática ao selecionado e conseguiu detonar o pouco que havia de aproveitável ao expor a nossa até então sólida defesa à avalanche ofensiva adversária, não levando em conta que estava vulnerabilizada pela ausência de Thiago Silva (a falta de entrosamento entre David Luiz e Dante acabaria sendo fatal para nós). Substituiu o fraturado Neymar pelo novato Bernard, armou um ataque de quatro (com o dito cujo, mais Oscar, Hulk e Fred) e ficou rezando para que Luiz Gustavo e Fernandinho, sozinhos, conseguissem proteger suficientemente os zagueiros.
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Não deu a mínima para o fato de que a Alemanha goleara (4 X 0 Portugal) quem não congestionou a intermediária para evitar que seus hábeis armadores tivessem liberdade para articular os ataques, encontrando, contudo, muitas dificuldades diante de selecionados que adotaram esquemas cautelosos. Deveria ter mantido Paulinho e sacado o obsoleto Fred (uma completa inutilidade!) para a entrada de Bernard.
Treinadores que colocam intuições e superstições acima da lógica podem tanto tirar o bilhete premiado quanto causar a desgraça dos seus comandados. Felipão, contra todas as evidências, apostou que Ronaldo Fenômeno conseguiria atravessar o Mundial de 2002 sem contundir-se, embora viesse de lesão em lesão desde a Copa anterior. A sorte o bafejou daquela vez.
Então, fez agora uma aposta mais temerária ainda, acreditando que surpreenderia a Alemanha se optasse por uma tática kamikaze. Viajou na maionese, pois saiu tudo errado.
PublicidadeA pressão inicial deu em nada, pois nossos atacantes não conseguiram causar real perigo para o ótimo goleiro Neuer, enquanto os alemães nos ameaçaram duas vezes.
Na terceira marcaram, aproveitando um escanteio: os defensores só se preocuparam com os possíveis cabeceadores, todos furaram e ninguém estava marcando Müller (logo ele!), que aproveitou nosso apagão para abrir o placar.
Apagão pior viria entre os 22′ e os 29′, quando os alemães marcaram quatro gols sucessivos (dois de Kroos, um de Klose e um de Khedira), seja trocando passes diante dos nossos embasbacados zagueiros, seja roubando a bola de Fernandinho como quem tira o doce de uma criança, seja aproveitando um cruzamento que atravessou toda a nossa área sem que nenhum defensor estivesse no lugar certo para interceptar.
A partir daí os germânicos passaram a atuar em ritmo de treino, seja por compaixão, seja preservando-se para a final.
Com Paulinho no lugar de Fernandinho e Ramires substituindo o Incrível (mente ruim) Hulk, nosso selecionado deu um pouquinho de trabalho a Neuer no começo do segundo tempo, mas foi só. Os alemães continuaram tendo as melhores chances e devemos dar graças a Deus por termos sofrido apenas mais dois tentos, ambos de Schürrle (o último foi uma pintura!). Oscar, no apagar das luzes, fez o chamado gol de honra — mas, quando o placar adverso é de 7 X 1, cabe melhor o termo desonra.
Inventário das cinzas
Os que, até a bola começar a rolar, desmanchavam-se em salamaleques para o Felipão, agora são os primeiros a crucificá-lo. É o que sempre ocorre. Mas, ao contrário do que o próprio treinador declarou na coletiva, não deve ser visto como o maior culpado.
Fracassou? Sim, miseravelmente. Mas, isto só ocorreu porque estava onde não deveria estar. Assumiu a seleção brasileira depois de dez anos sem conquistas significativas, sendo que, após ter empurrado o Palmeiras ladeira abaixo, no rumo certo da segunda divisão, nenhum clube se interessou mais por ele.
Aí outro ultrapassado o resgatou da aposentadoria: o novo presidente da CBF, José Maria Marin. Por quê? Talvez pela natural afinidade entre indivíduos de índole autoritária. Talvez porque quisesse provar que a passagem do tempo, afinal, de nada importa.
O certo é que pessoas ligadas a Pep Guardiola lançavam balões de ensaio no sentido de que ele estaria interessado em ser o técnico do Brasil. E o Zé da medalha descartou deselegantemente a hipótese, preferindo um Ford de bigode a uma Ferrari.
“Se perdermos, vamos todos para o inferno”, profetizou Marin — que lá estará entre amigos, afinal tem a esperá-lo alguns dos seus mais estimados ídolos, como o delegado Sérgio Fleury e os torturadores que fizeram a devassa por ele exigida na TV Cultura (ponto de partida do assassinato de Vladimir Herzog).
Quanto a Scolari, os cristãos devem seguir o exemplo do Senhor e perdoá-lo, pois não sabia o que fazia e são raros os indivíduos que admitem suas limitações. Seres humanos muito maiores, como Muhammad Ali, também não souberam discernir a hora certa para parar.
De resto, se confirmada a escolha de Tite para novo técnico da seleção, teremos uma possibilidade de resgatarmos nosso prestígio em 2018. Afinal, ele sempre se notabilizou por criar esquemas táticos para equipes inferiores equilibrarem os duelos com as mais fortes.
E é exatamente este o estágio do futebol brasileiro: já não podemos partir para o jogo franco contra as Alemanhas da vida, sob pena de sermos massacrados. Sem realismo e humildade, continuaremos quebrando a cara e conspurcando nossa belíssima história futebolística.
Não foi por falta de aviso
Faz pouco mais de um ano. Em 02/07/2013, logo após o Brasil ter conquistado a Copa das Confederações com um sonoro 3 X 0 sobre a Espanha, escrevi: “[os ciclotímicos brasileiros] já dão nossa seleção como franca favorita para o Mundial e descobrem insuspeitadas virtudes no técnico que até ontem todos reconheciam estar ultrapassado. Estavam certos antes e erram agora: o Felipão está mesmo muito ultrapassado! Desta vez o Felipão copiou a marcação que o Bayern adotara contra o Barcelona e a Itália repetira dias antes no Castelão. Deu certo porque o técnico Vicente del Bosque também não é nenhum gênio da estratégia, caso contrário teria buscado uma linha de ação para responder ao desafio com o qual, era facílimo prever, se defrontaria novamente.
Mas, e quando não houver ninguém indicar o caminho das pedras? Na Copa do Mundo, a falta de um estrategista no banco tende a ser fatal. Numa competição que todos querem ganhar, não bastará ficar parando o adversário com uma falta atrás da outra, como ele fez contra a Espanha”.
O artigo completo pode ser acessado aqui. Outro que se revelou profético em muitos aspectos é este aqui. Confiram, por exemplo, a advertência final: “Quanto ao Brasil, está no bom caminho, mas tem de começar desde já a preocupar-se com o melhor futebol da atualidade: o alemão. Não voltou a ser o nº 1 do mundo por haver suplantado, três anos depois, o vencedor do último Mundial. Longe disto”.
Mais explícito ainda eu fui na minha crônica do maracanazo anunciado (clique aqui), de 03/08/2013: “Felipão e Parreira, somados, hoje não dão meio Muricy (ou um terço do Tite). Se nada de diferente acontecer até o Mundial, a dupla já-vi-dias-melhores conduzirá nosso Titanic para o desfecho indesejado, mas pra lá de previsível. Quem viver, verá”.
A falta de um estrategista no banco acabou sendo mesmo fatal, pois o Felipão deixou de reforçar o meio de campo ao enfrentar uma seleção que goleara por 4 X 0 o último incauto a cometer tal tolice. Resultado: levou uma goleada mais acachapante ainda.
Aparentemente, o Brasil não se preocupou com o futebol alemão ou nossa comissão técnica foi bisonhamente incapaz de fazer uma leitura correta dos seus pontos fortes e fracos. Pois, se um gênio desse a Joachim Löw o direito a fazer um pedido antes da semifinal, ele decerto desejaria que o Brasil atuasse exatamente como atuou. Nunca foi tão fácil para um campeão do mundo triturar outro.
E quem viveu, viu o Titanic brasileiro ser mesmo conduzido por Felipão e Parreira para o fundo do mar. Afundou tanto (tratou-se do maior vexame de um selecionado canarinho em todos os tempos!) que será difícil trazê-lo de volta à superfície e rebocá-lo para o estaleiro.
Como não sou nenhuma pitonisa, deixei de emplacar 100% nas minhas previsões: subestimei Júlio César, acreditando que a sua dificuldade em arrumar time melhor na Europa se devesse a uma definitiva decadência. Dou a mão à palmatória: ele foi um dos poucos que agora se salvaram do naufrágio.
Em compensação, acertei em cheio quanto ao erro cometido por Felipão ao não dar outras chances a Lucas (“um jogador muito mais promissor do que o tão esforçado quanto limitado Hulk”) e ao qualificar de temerária a “a aposta em Fred, o anacrônico artilheiro que passa 90 minutos à espera de uma chance para colocar a bola nas redes”.
Mas, apesar deste realismo me angariar muita antipatia e de eu não haver conseguido, com meus prognósticos corretos, alterar em sequer um milímetro o rumo dos acontecimentos (ver um desastre se desenhando e não ter como evitá-lo dá uma terrível sensação de impotência!), consolo-me com a constatação de que a minha parte, pelo menos, eu fiz.
Ao contrário de alguns famosos comentaristas esportivos de ofício que esqueceram suas críticas ao Scolari a partir do triunfo na Copa das Confederações e consequente euforia ingênua dos desinformados, tive a coragem de afirmar que não passava de ouro de tolo — tanto que, antes dos fiascos de 2006 e 2010, nós também a conquistamos.
Eu consigo dormir muito bem à noite. Os fazedores de média do jornalismo, ou já se habituaram a conviver com o próprio cinismo ou devem estar com olheiras profundas.
* Celso Lungaretti é jornalista.
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