Vamos começar lá de trás, colocando na roda do mundo o marechal Deodoro da Fonseca, que, no dia 15 de novembro de 1889, liderou uma quartelada e destronou seu amigo, o Imperador do Brasil, Dom Pedro II. Aquele barbudo sisudo dos compêndios de História do nosso tempo de criança.
Dizem os historiadores que isso aconteceu por que a filha do Imperador, princesa Isabel, contrariando a turma do agronegócio daquela época, no dia 15 de maio de 1888 assinou uma Lei, apelidada de Áurea, que pôs fim à escravidão no Brasil.
Um dia desses, ao saber que a primeira Constituição republicana, a de 1891, tinha proibido o voto aos analfabetos, fiquei curioso. Fui à cata de informação, quis saber quantos eram os analfabetos que, naqueles idos, perderam seus direitos políticos.
Vejam só que achado. Primeiro, descobri que no tempo do Brasil colônia, e durante quase todo o Império, eles votavam. Verdade! Era-lhes assegurado esse direito. Isso já me deixou ensimesmado. Afinal, passei um tempão da minha vida acreditando que a República era mais democrática que o Império. Segundo, descobri que eram pouquíssimos os letrados.
O censo demográfico de 1890, segundo realizado no Brasil, revela-nos a existência de 14.333.915 brasileiros e brasileiras vivendo por essas belas paisagens tropicais. Desse total, informa-nos o censo que apenas 14%, ou 2.006.748 de habitantes, eram alfabetizados. Considerando que metade eram mulheres, portanto sem direito a voto, restaram apenas 1.003.374, ou 7% de homens letrados, todos brancos. Na primeira eleição popular para presidente da república, realizada em 1894, votaram 356.000 eleitores, ou 2,2% da população. Prudente de Morais, sabe Deus como, deu um banho de votos em seus adversários, obtendo 290.883, ou 88,38% dos votos.
Leia também
Pois bem, foram esses poucos homens brancos, letrados, que se ocuparam da política. Foram eles e somente eles que, zelosamente, organizaram a governança da nação brasileira, para si e para os seus, excluindo os demais. Não é de se admirar que até hoje se sintam senhores absolutos dos anéis, com direito a se apropriar do que é público de maneira privada, como se tivessem ordenamento divino para assim proceder.
PublicidadeNo entretempo que se estendeu do final do século XIX aos nossos dias, tendo o marechal Deodoro como marco inicial, exaltando a ordem e o progresso na alvorada da República, e, na outra ponta, na do presente, Michel Temer, ameaçando por ordem no progresso, muita água rolou por baixo da ponte.
Nesse ínterim, os excluídos foram à luta. As mulheres, em 1932, conquistaram direitos políticos plenos, passaram a votar e ser votadas, já os analfabetos tiveram que aguardar um “pouco mais”, cerca de meio século depois das mulheres, para influenciar nos destinos da nação. Ainda assim, meia-boca, pois a Emenda Constitucional Nº 25, de 15 de maio de 1985, garantiu-lhes o direito de votar, mas não de ser votados. Vejam só, isso se passou 97 anos depois da abolição da escravatura.
Nos últimos dias, nota-se um aperto de mão inusitado entre Temer e Deodoro. A aproximação não fica apenas no slogan coincidente exaltando a ordem e o progresso. Sem muito esforço, outras afinidades serão identificadas. Por exemplo, o marechal não queria ver mulher por perto. Pelo menos compondo sua equipe ministerial, Temer, sem tirar e nem por, imitou o presidente militar nesse quesito. Com uma diferença: admite que elas sejam belas, recatadas e do lar.
Não são poucas as semelhanças, a começar pelos atalhos para chegar ao poder. Tanto um como o outro não precisou de votos para sentar no trono de ferro da Presidência. O marechal, além do apoio irrestrito da poderosa oligarquia rural da época, que jamais perdoou o Imperador por tê-los deixados sem seus escravos, dispunha de outro argumento convincente, a força das armas.
Nesse aspecto, Temer se diferencia. Não precisou delas, menos mal. No entanto, contou e conta com o irrestrito apoio do mesmo setor social que seu colega sem voto do passado obteve. Também recebeu integral adesão de sua representação política, daqueles que hoje certamente não pretendem revogar a Lei Áurea, mas tentarão por todos os meios fragilizar direitos sociais e trabalhistas, regras ambientais, impedir as investigações sobre corrupção em curso. E que se preparam para avançar sobre as terras indígenas.
São tantas as semelhanças entre Deodoro e sua turma, lá do século XIX, e a turma do Temer, aqui do século XXI, que fico sem entender quem cruzou a barreira do tempo. Se o marechal que chegou de volta ao futuro; ou se Temer que mergulhou profundamente no passado.
Deixe um comentário