Por Cezar Britto *
Especial para o Congresso em Foco
A primeira vez em que eu pensei escrever um diário remonta ao tempo de infância, quando eu ainda morava na minha Propriá de nascença, no meu querido Sergipe. O interessante é que este meu pretendido diário não tinha como finalidade anotar os registros cronológicos das coisas que eu fazia. Esta forma tradicional de registrador de memória não despertara o meu interesse de criança. Na verdade, eu queria apenas registrar o meu pensamento sobre vários assuntos, para que, no futuro, o adulto que eu me tornaria soubesse o que uma criança de quase dez anos de idade pensava. Eu acreditava naquela época que o tempo teria o defeito de causar amnésia crônica sobre o saber prematuro de uma criança e, assim, o meu “eu-adulto” poderia dialogar com o meu “eu-criança”. Pena eu ter perdido estas anotações e não poder aprender no hoje o saber do ontem. O tempo passou e com ele o antecipado vaticínio do esquecimento.
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A segunda vez em que eu pensei em escrever um diário de bordo foi quando, pousei, em viagem inédita, em Angola. A emoção em conhecer a África, terra dos nossos ancestrais e dos responsáveis pela colorida beleza brasileira, justificava-me a necessidade de colher em páginas de computador a memória daquele inesquecível encontro com o meu passado genético e histórico. E foi mesmo um amor à primeira visita. Eu, anos depois, seria eleito presidente da União dos Advogados da Língua Portuguesa e, em razão disso, visitado vários países africanos, assinando vários convênios e vivenciando experiência múltiplas.
Estes dois pequenos registros renasceram em minha mente quando um dos meus companheiros de viajem rumo à Rússia, garbosamente, abriu um pequenino livro que trazia na capa os rostos de Karl Marx e Friedrich Engels e, nele, começou a anotar os seus registros pessoais da viagem que nomina esta crônica. Como compartilhar é espécie do gênero socializar, resolvi seguir o conselho do camarada viajante e também escrever este pequeno diário de bordo no meu inseparável computador. Esta pequena divergência de método redacional, advirto, não tem qualquer significado relevante, como aquelas travadas entre os mencheviques e os bolcheviques do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR). A verdade é que minha letra é tão feia e incompreensível para mim mesmo, que desisti de ser proprietário de qualquer caderno de anotação no segundo ano científico, porém acabo de “entregar” minha idade com a expressão: segundo ano científico.
PublicidadeNão é preciso maiores esclarecimentos para anotar que o destino da minha viagem era testemunhar o que acontecera nas cidades de São Petersburgo (Leningrado) e Moscou, cem anos após o triunfo da Revolução Bolchevique de 1917. O nosso grupo era integrado por Aldo Arantes, Cléo Coutinho, Diego Britto, Gabi Britto, Jane Correia, Marluce Britto e Nilton Correia. Estava previsto, ainda, encontrarmos outras delegações de brasileiros e brasileiros, especialmente durante os atos comemorativos do centenário da revolução comanda por Vladimir Ilyich Lênin, Leon Trotsky, Yákov Sverdlov e Lev Kamanev. Estes encontros estavam sendo organizados por Aldo Arantes, o grande líder comunista que já conhecera São Petersburgo, em 1962, para participar do Congresso Internacional de Estudantes juntamente com o saudoso Marco Aurélio Garcia e Roberto Amaral, integrantes da diretoria da União Nacional dos Estudantes (UNE) por ele presidida.
O plano de voo previa uma rápida conexão no aeroporto parisiense Charles de Gaulle, vez que inexistindo linha direta para a Capital dos Czares, dos Romanov e do Império Russo, fundada em 1703, por Pedro, o Grande. Mas não deixava de ser uma parada interessante, pois a terra da burguesa Revolução Francesa de 1789 e da revolucionária Comuna de Paris de 1871 também foi decisiva para o sucesso da Revolução Bolchevique de 1917. É que Lênin e Trotsky, quando em exílio, fizeram de Paris e Londres trincheiras importantes de resistência, comunicação e organização dos atos pré-revolucionários. Aproveitei a passagem para comprar e ler durante o trajeto final a revista francesa Courrier International, que trazia como capa um desenho de Lênin e a seguinte manchete: Russie. Les Héritiers de la Révolution.
Pousamos na antiga e resistente Leningrado no dia 28 de outubro de 2017, exatamente 100 anos após a data que o próprio artífice primeiro da Revolução apontou como sendo um dos momentos cruciais da vitória bolchevique contra o provisório governo burguês de Kerensky. Na introdução do imperdível livro de John Reed, em que se conta, detalhadamente, os “Dez dias que abalaram o mundo”, anotou-se as seguintes linhas sobre o dia da nossa chegada: Lênin insistiu na imediata tomada do poder; o comitê finalmente concordou, por dez votos a dois, descobrindo, então, que não havia papel para o registro das resoluções. Lênin pediu emprestado um caderno de exercícios da criança da casa e escreveu a lápis numa folha. O dia clareava. Alguém perguntou: “Bem, mas e a data?” Com pressa de retornar ao refúgio, Lênin respondeu, por sobre o ombro: “28 de outubro”.
Assim como, na época, pairava dúvida sobre o momento em que se iniciaria a Revolução, também nós não sabíamos o que encontraríamos no território consagrado ao poder dos trabalhadores e que dividira, por longos anos, o mundo entre dois grandes blocos (capitalista e comunista). E perguntas e mais perguntas desembarcaram em nossas inquietas bagagens. Ainda permanecia a influência marxista, leninista, trotskista ou stalinista na terra comandada por Vladimirovitch Putin, desde 07 de maio de 2000? Conservaria a nova Rússia o fervor revolucionário de 1917? A criança sonhadora de Propriá que sabia do poder amnésico do tempo, constataria, já adulta, que o esquecimento também poderia acometer toda uma nação? A Revolução Bolchevique ainda vivia?
Como se vê, a viagem estava apenas começando…
O pouso na cidade de São Petersburgo foi tranquilo, contribuindo para suavizar a óbvia tensão do grupo que logo apresentaria o passaporte de ingresso no controle da alfandega do país de língua estranha e não falada por qualquer dos integrantes. Ultrapassada esta etapa e confirmada a chegada de todas as malas, detalhe fundamental por guardarem os agasalhos que usaríamos para enfrentar a temperatura abaixo de zero e, quem sabe, neve. Restava-nos, assim, respirar o ar russo que agitara o mundo cem anos atrás, conclamando os trabalhadores para que, unidos, espalhassem a revolução comunista em todos os cantos e recantos do planeta.
A primeira russa que conhecemos em nossa viagem foi Júlia Basalik, a guia que contratamos e nos esperava na saída do Aeroporto de Pulkovo, construído no período stalinista e que ainda adota o código LED em razão da época em que a cidade era chamada de Leningrado. Júlia era formada em educação física e em história e, como toda pessoa apaixonada pela profissão escolhida como sua, tinha uma dedicação especial à família Romanov e aos seus luxuosos palacetes. Esta característica se fez notar tão logo avistamos uma grande estátua de Lênin, uma das quatro restantes na cidade que já acolheu seu nome. Disse-nos ela, apesar de ter estudado em uma escola da era comunista, que após Mikhail Gorbachev e as desastradas Glasnost e Perestroika andar com a foice e o martelo em alguma indumentária era coisa de turista.
E, de fato, durante o trajeto não encontramos qualquer transeunte usando o característico símbolo comunista, nem quando paramos para as costumeiras fotografias turísticas diante da enorme estátua em que o líder bolchevique apontava o ocidente como próximo destino internacional de sua revolução. Também não encontramos qualquer faixa, propaganda ou mínimo anúncio comemorativo de centenário que motivara a nossa presença em solo russo. Nada parecia indicar que a cidade de São Petersburgo queria relembrar o seu passado revolucionário, ainda que para fins meramente comerciais ou de rendosa atração turística pela redonda data. O cansaço pela longa viagem e, no dizer de Leon Tolstói, a mancha escura na luz do sol que caracteriza a cidade russa no mês de outubro não eram conselheiros confiáveis para qualquer afirmação segura.
No dia seguinte, cumprindo a missão de compreendermos melhor a atmosfera que influenciara os acontecimentos de 1917, passamos a visitar os sítios e os lugares que vivenciaram a Revolução Bolchevique. Antes, na lojinha do hotel, já iluminados pela luz do dia, percebemos os variados mimos e souvenires típicos da Rússia, a exemplo das vodcas e suas caixas coloridas de proteção, os caríssimos ovos Fabergé e suas infinitas imitações, as charmosas matrioskas em seus variados tamanhos, preços e formas, as coloridas caixas de músicas, os calçados russos conhecidos como Valenki e incontáveis coisas tendo como tema os czares e os nobres que os cercavam. E entre imagens abundantes de Putin e matrioskas de Obama, John Lenon, Trump, Michael Jackson, Ronaldinho e times inteiros de atletas e artistas não encontramos qualquer item relacionado aos heróis revolucionários de 1917 ou mesmo à famosa dupla foice e martelo.
Encafifados, começamos a nossa peregrinação pelas igrejas ortodoxas russas que sobreviveram ao anticlericalismo marxista-leninista. Evidentemente não conseguimos visitar todas as igrejas que em que divisamos as cúpulas, torres e cores ricamente ornamentadas. Concentramo-nos na imponente e luxuosa Catedral de Santo Isaac (dedicada ao czar Pedro, o Grande), na exótica e rica Catedral do Sangue Derramado (construída pelo czar Alexandre III, no local em que o seu pai, o czar Alexandre II, sofreu mortal atentado), na venerada Catedral de Nossa Senhora de Kazan (também transformada em memorial comemorativo da vitória russa sobre Napoleão pelo czar Alexandre I), na barroca e detalhada em ouro Catedral de São Nicolau (construída pela czarina Isabel) e, finalmente, na Catedral de Pedro e Paulo (construída pelo czar Pedro, o Grande, abrigando, hoje, as tumbas de todos os czares da Dinastia Romanov).
E foi exatamente na Catedral de Pedro e Paulo que se revelou uma das razões excludentes das festividades comunistas na terra da Revolução Bolchevique. É que no ano 2000, consolidando a primeira fase canônica aberta em 1981, a Igreja Ortodoxa Russa canonizou toda a família Romanov como santos “Portadores da Paixão”, assim como dois de seus antigos servos. Perdoado, portanto, estava o novo São Nicolau da vida opulenta em riquíssimos castelos enquanto o povo morria de fome, bem assim absolvido dos crimes cometidos quando era o czar Nicolau II, como a Tragédia de Khodynka, o Domingo Sangrento que ceifara a vida de quase mil trabalhadores em greve e os milhões de russos mortos em razão de seu sonho imperialista durante a Primeira Guerra Mundial. Remido, também, estava o cruel sistema de servidão que, religiosamente, condenava à morte em vida milhões de camponeses e camponesas russos. Absolvido estava o santificado czar das prisões, dos exílios, das censuras, dos assassinatos e das perseguições aos adversários políticos.
O pecador religioso era outro e não nascera com o “divino sangue azul”. Lênin, ao desapropriar no dia 23 de janeiro de 1918 todos os bens da Igreja Ortodoxa, como fizera a Revolução Mexicana de 1910 com os bens da Igreja Católica, tornou-se o “herege” que assumira como política estatal combater o que Karl Marx resumira com a seguinte frase: A religião é o ópio do povo”. Stalin, ao destruir centenas de templos religiosos e ordenado a morte e a prisão de incontáveis religiosos, vestiu, como nenhum outro, a “capa vermelha do diabo comunista”. Nikita Khrushchev, Leonid Brejnev, Yuri Andropov e Konstantin Chernenko mantiveram o ateísmo estatal, não raro com perseguições e confiscos de bens religiosos.
O recado da Igreja Ortodoxa, recuperada em seu patrimônio e prestígio na Rússia após o último secretário-geral comunista, Mikhail Gorbachev, não poderia ser mais direto: Os comunistas russos não eram “apenas comedores de criancinhas”, eram também “assassinos de uma família santa” e “profanadores de templos”. E, assim, os “pecadores vermelhos” não mereciam ser comemorados em seu centésimo aniversário. Ao contrário, deveriam ser condenados, cada um deles, a viver na camada obscura do esquecimento. E sem direito a qualquer tipo de ressurreição.
No outro dia iríamos conhecer os castelos e o poderio dos Romanov, bem assim o motivo de continuarem tão cultuados, mas este serão assuntos para as próximas anotações.
* Colunista do Congresso em Foco, Cezar Britto é advogado e escritor, autor de livros jurídicos, romances e crônicas. Foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e da União dos Advogados da Língua Portuguesa. É membro vitalício do Conselho Federal da OAB e da Academia Sergipana de Letras Jurídicas.
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