Tavares Dias*
Faz tempo que quero falar para as minhas leitoras e os meus leitores de um assunto bem importante.
É embaraçoso pra mim, já que se trata de falar de mim mesmo, de algumas qualidades minhas. Sabe como é.
Mas acontece que ganhei uns livros de auto-ajuda e tive de ler todos, porque me foram dados por uma pessoa com quem pretendo fazer bons negócios, e então entendi logo que precisava conhecer as obras e depois discuti-las com quem me deu o helênico presente. Uma forma, digamos, de amaciar o distinto (epa!), se é que vocês me entendem.
Pois bem, mas um dos tais livros me diz que a gente não deve esconder os próprios talentos, que é muito importante não ser como a pata, que bota um ovão e ninguém fica sabendo, enquanto que a galinha garnizé põe um ovinho assim e conta pro quintal inteiro. Então, lá vai.
Nem sempre fui esse cara assim apagado e encostado pelos cantos, vivendo na sombra. Já tive meus dias de intenso fulgor, já fui chuva grossa, já dei carta e joguei de mão.
Eram outros tempos, é verdade. Naquela época, eu, Tom e Vinicius ainda nem tínhamos composto Garota de Ipanema. Eu tampouco tinha começado a escrever Capitães de areia, nem Jubiabá, nem Mar morto, pra receber aquela miséria que o Jorjão me pagou. Eram tempos bicudos. Eu me lascando numa Lexikon 80 de carro grande, no calor de Salvador, o Jorjão na rede, ouvindo Caymmi, e Zélia dando pitaco em tudo. Mas sobrevivi.
Isso foi, na verdade, muito antes de eu formar na Seleção Brasileira aquele meio-de-campo com o Zico e o Falcão. Tinha tudo pra dar certo, mas nunca vi bicho invejoso que nem boleiro. Carreguei o time nas costas mais de cinco anos, ensinei uma porrada de coisas, e o que ganhei? Fim de jogo, eles ali, saindo de campo devagar, fingindo cansaço, meia arriada, querendo atrair a atenção de algum jornalista, e a turma toda em volta de mim, repórter quase saindo na porrada, que os editores todos queriam exclusiva comigo, era talkshow daqui, enquete dali, um inferno. Acabei me irritando com eles e pulei fora. Resultado? Paolo Rossi 3, Brasil 2, a tragédia do Sarriá, em 82. Paciência. Os caras têm de saber que não podem ter tudo. Não comigo, pelo menos.
Mas tem gente boa no meio também, é forçoso admitir. Foi só pela consideração que eu tenho com o Ariano Suassuna, meu parceiro em O auto da compadecida, que eu não botei no pau o Chico e o Caetano, por causa de duas obras minhas que nem são das melhores mas que, pombas, os caras não tinham o direito de pegar pra eles: Construção e Trem das cores. E aí, pra não ser justo com uns e injusto com outros, livrei a cara também do João Bosco e do Aldir, por causa de O bêbado e o equilibrista, Kid Cavaquinho e De frente pro crime. Questão de isonomia.
As coisas só melhoraram um pouco depois que conheci Dias Gomes, aliás apresentado pelo Jorge Amado. Verdade que pelo texto de O pagador de promessas eu recebi uma merrequinha assim, pequenininha que nem língua de mosquito, mas pela novela e pelos especiais de O bem amado a coisa já começou a render, em dinheiro e em mulher.
Quando rende em mulher, não precisa nem jurar, também rende sempre confusão, porque elas são seres de auto-estima muito fragilizada e por isso muito exclusivistas, ciumentas e temperamentais. Pra dizer a verdade, foi duro evitar que chegasse à mídia a ginástica que eu fazia pra enganar a Sonia Braga e a Vera Fisher pelos corredores da Globo, em meio a paparazzi e colunistas sensacionalistas, mas consegui. Não me perguntem como.
Essas coisas cansam um pouco a gente, mas, acreditem, dão maturidade e equilíbrio. No meu caso, também foi pela mão de gente amiga que consegui a boquinha de escrever, pro Spielberg, os roteiros de E.T. e de O parque dos dinossauros, justamente quando a patroa já tava me apertando por causa de um tal sítio que eu prometia e não comprava nunca, e que é onde moramos hoje. Não posso dizer onde, é claro, por razões que vocês hão de compreender. Meus vizinhos pensam que sou aposentado da magistratura e me chamam de tubarão. Pelas costas, é lógico, porque se borram de medo de eu mandar a polícia dar um baculejo neles.
Muitas dessas coisas eu já valorizei muito, até um tempo atrás, mas hoje tenho de reconhecer que são apenas ilusões. Não tem nada que pague a privacidade, o sossego, o direito de escrever só alguns pequenos textos por semana, fazer um sambinha de vez em quando, lançar um livrinho a cada dois anos.
Então, se hoje estou fazendo esse desabafo, ousando quebrar o meu anonimato e me expor à inevitável avalanche de pedidos de entrevistas que me aguarda a partir de amanhã, é apenas por acreditar que é dever de um escritor bem-sucedido compartilhar sua experiência, principalmente num país como o nosso, que tem tantos leitores, que trata seus escritores com tanto respeito e tanta dignidade.
Espero de verdade ter contribuído para aumentar a esperança de tantos jovens que sonham produzir roteiros de novelas, de biguibródis, de filmes pornô, de auto-ajuda, de programas dominicais de auditório para a TV aberta.
Mas que ninguém se engane: se hoje já não sou chuva grossa, mas apenas sereno da madrugada, não pensem, contudo, que afrouxei a têmpera, nem a pegada, nem o punch, nem que perdi o feeling.
Dia desses, pela necessidade de atender um cliente afoito, estive numa solenidade em Palácio, em Brasília. Pois o Lula me procurava com o olhar o tempo inteiro, carentão, doido por uma reaproximação. E eu lá, na minha, fingindo de morto. Na hora de vir embora, passei em frente à mesa, dei um alô pro Zé Alencar, meu velho e fiel sócio na indústria têxtil (“Saúde, malandro”) e nem tchuns pro Lula. Detesto malufistas.
Como diz Jorge Aragão, num samba que todo mundo pensa que é dele mas é meu: “Quem foi que falou que eu não sou um moleque atrevido? Ganhei minha fama de bamba num samba de roda.”
Vai encarar, ô?
*Tavares Dias, 55 anos, é jornalista, escritor, compositor e professor. Mineiro, trabalhou em diversas redações do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Espírito Santo. É o parceiro musical mais freqüente do cantor e compositor mineiro Zé Geraldo. Em maio, lançará seu quinto livro, No reino de Pedro Félix (contos).
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