Luís Cláudio Guedes*
A transposição das águas do rio São Francisco detém, até aqui, o status de maior projeto daquilo que um dia será chamado de a Era Lula. E não só pelo volume de recursos envolvidos – a última previsão é de que o desvio do rio da integração nacional custe algo em torno de R$ 6 bilhões. A obra pode ser um marco também pela tentativa de resolver o secular desafio da seca no semi-árido nordestino e pôr fim à indústria que a situação alimenta. Não é pouco dinheiro envolvido no projeto. Contudo, como é da praxe nacional, a obra, quando e se um dia for concluída, terá drenado soma bem maior de recursos.
O principal argumento do governo federal para tocar a transposição é de que os canais a serem abertos no sertão vão levar água para 12 milhões de nordestinos. Aí está o ponto que gera maior contestação por parte dos adversários da transposição. O número estaria superestimado e os maiores beneficiários pelo projeto serão latifundiários e empreiteiros. Esses, porque teriam a oportunidade de reviver o hábito pátrio de fazer um outro tipo de transposição: a de dinheiros públicos para o financiamento de campanhas de políticos parceiros. Aqueles, pelos rumores da existência de especulação imobiliária nas áreas localizadas perto do que serão as futuras margens dos canais de irrigação.
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A polêmica é das boas e há que se considerar a opinião dos barranqueiros sobre o tema. Barranqueiros, explico, são aquelas pessoas que moram às margens do rio e que têm interesse direto no seu destino. É salutar que eles sejam ouvidos, inclusive como forma de contraposição ao ânimo do presidente Lula em patrocinar a obra, custe o que custar.
Aos barranqueiros, principalmente dos estados de Minas Gerais e da Bahia, os chamados doadores da água a ser transporta, interessa mais ação do governo em relação a medidas que promovam a revitalização do rio. Recuperar o rio do processo de degradação que enfrenta deve ser questão que preceda a transposição pura e simples das suas águas para qualquer finalidade. O rio sofre um acelerado processo de destruição e a questão que se coloca é a seguinte: até que ponto, no médio prazo, não se corre o sério risco de o São Francisco não ter mais a água que agora se deseja transpor sertão adentro.
O recente ataque de algas que infestam o São Francisco entre Pirapora a Manga e a proliferação das cianobactérias tóxicas são graves indicadores da agonia que o rio enfrenta. O desastre ambiental foi atribuído aos esgotos humanos e ao derramamento de adubos do tipo NPK no seu leito. O fósforo, o “P” da fórmula NPK, pode favorecer o desenvolvimento das algas. O resto ficou por conta da forte estiagem que assolou a região, o que deixou as águas mais límpidas e permitiu que o sol penetrasse e, com isso, as algas se desenvolvessem mais rapidamente.
O governo trata o assunto com certa dose de açodamento e um viés autoritário – basta citar a forma como o bispo de Barra (BA), dom Luiz Flávio Cappio, foi tratado nessa última greve de fome: algo entre chantagista e inimigo do Estado e dos supostos 12 milhões de beneficiários da transposição. O que não é verdade, pois o projeto não tem unanimidade agora nem nunca terá. Esse mesmo governo tem contra si a notória dificuldade de tirar do discurso as muitas promessas que faz. É o caso da construção de um milhão de cisternas na região Nordeste, medida adicional de combate à seca. Fez um quarto disso e não volta ao assunto.
Na questão da revitalização, recordo que o ministro Geddel Vieira Lima (Integração Nacional) anunciou obras de esgotamento sanitário em boa parte das cidades ribeirinhas e, no que diz respeito ao Norte de Minas, nada foi feito após seis meses da promessa. Há muitas pendências para a recuperação do rio. São medidas de urgência mais relevante que a dita transposição das águas. Além de acabar com o lançamento de dejetos no rio São Francisco, é necessário dragar os pontos mais críticos do assoreamento do seu leito e iniciar para ontem um programa de replantio da mata ciliar, destruída ao longo dos últimos 500 anos de exploração econômica das riquezas do rio e das suas margens. Tais cuidados devem ser estendidos aos afluentes que formam a bacia do “Velho Chico”, que também sofrem com a degradação.
No caso da transposição, o governo age com a mesma pretensão de dono da verdade que marcou sua acachapante derrota na votação recente da CPMF. Não admitia o contraditório e o resultado foi o que se viu. Em política, a arrogância é a antevéspera da derrota. “Se o Estado cede, o Estado acaba”, disse Lula sobre o bispo Luiz Cappio. Por que não submeter o tema a um plebiscito? Talvez descobrisse o óbvio: a transposição das águas do rio São Francisco não é ponto pacífico e nem sempre o que parece ser bom para o presidente de plantão é bom para o país e seu povo.
Para mostrar que não está para brincadeiras, o governo até já bateu o martelo na licitação do primeiro lote da obra, o chamado eixo Norte. O eixo Norte, de 440 quilômetros, responde pela maior parte do projeto e vai levar água em canais de concreto aos estados do Ceará, da Paraíba e do Rio Grande do Norte.
O governo obteve outra vitória com o anúncio, na semana passada, do final da greve de fome do frei Luiz Cappio, que colocou fim ao jejum que já durava 24 dias. O religioso talvez não quisesse de fato se imolar na luta contra a transposição e teve o mérito de chamar, em duas ocasiões, as atenções do país para o tema. Dom Cappio não vestiu o figurino de mártir, talvez porque saiba o descaso com que o país trata seu restrito time de heróis. Ele não desiste: vai centrar forças na aprovação de emenda constitucional que garanta a revitalização do rio, por meio da destinação de 0,5% da arrecadação da União para um fundo especialmente criado para tal fim.
Quanto ao presidente Lula, se quiser mesmo ser reverenciado como o presidente que finalmente enfrentou um problema que se arrasta desde os tempos do Império, deveria dar mais atenção aos que clamam pela revitalização do “Velho Chico”. Este sim, o grande desafio que se coloca perante o país: o risco da degradação incontornável do rio da integração nacional.
*Luís Cláudio Guedes, 43 anos, é jornalista formado pela Universidade Federal de Goiás e assessor de imprensa. Mais artigos dele em: http://luisclaudioguedes.uniblog.com.br.
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