Não que a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) tenha contratado um pistoleiro para assassinar o historiador e professor Hermógenes Lima Fonseca; nem mandado um lacaio num carro desgovernado atropelá-lo na subida do Morro da Fonte Grande ou envenenado sua farinha quando saboreava um pirão de caldo de cabeça de peixe no Pixingolê; e muito menos um "magnífico reitor" tenha descarregado a arma à queima roupa contra o peito do folclorista quando ele passava nas imediações do Campus de Goiabeiras – ameaçando a História Oficial com os originais de muitos causos debaixo do braço.
Seria possível alguém da aristocrática Ufes fazer isso? Sim. Em meados de 1992, o "reitor" do Centro Universitário do Norte (Ceunes), ao chegar ao pátio, deparou-se com um negro de uns 15 anos nas grimpas de uma frondosa mangueira deliciando-se com uma doce e suculenta polpa, sacou do coldre um 38 e disparou um balaço no jovem descendente de quilombolas, matando-o covardemente. Foi preso em flagrante, confessou o crime – noticiado no jornal A Gazeta, de Vitória –, mas as "forças acadêmicas" aliadas às eclesiásticas, partidárias e conservadoras da velha e ainda escravocrata São Mateus logo o livraram da prisão. E, pasmem, ele nem ao menos foi a julgamento.
Não, felizmente o nosso incorrigível Armôjo não foi morto assim. A sua morte foi lenta, gradual, quase por inanição – como convém aos inimigos de consciência –, visto que os "assassinos" não se lhe apresentavam abertamente, até se diziam admiradores de sua obra, "deliciavam-se" com os seus causos e o indicaram para a Academia Espírito-Santense de Letras e para o Instituto Histórico e Geográfico, onde pôde ser respeitado, admirado e reconhecido. "Mas fazer parte do staff da Ufes não, não e não!", dizia um renomado "catedrático", para quem Hermógenes era "popular demais", o que destoaria da elite cultural e acadêmica da instituição. Certo dia, ele deixou escapar: "Vá lá que Hermógenes resolve levar para a sala de aula o Reis de Boi, a Marujada, o Ticumbi…. e aquela negrada toda do Cricaré. Como é que fica?". Por isso, não ficou.
A primeira vez que vi Hermógenes foi em março de 1968, na casa do farmacêutico Roberto Silvares, numa reunião com velhos camaradas do "partidão", dentre eles Aldemar Neves, José João, Milton Esteves e Nelson Gomes, na ebulição da notícia da morte do estudante Édson Luís de Lima Souto, assassinado pela Polícia Militar, no Calabouço, no Rio de Janeiro.
Hermógenes já estava desencantado com o PCB quando lhe mostrei uns poemas panfletários. Sábio e querendo evitar em mim as mesmas vicissitudes que sofrera, levou-me à balaustrada e apontou para o belo casario do sítio histórico Porto de São Mateus: "Basta o que sofremos. A luta em defesa do Porto e das histórias dos quilombolas é mais importante". Não lhe dei ouvidos… fui ao Rio de Janeiro viver na semi-clandestinidade, escrever poemas contra a ditadura militar e procurar os meus amigos Tiba e Jonga (do PCBR), que participavam da luta armada e logo beijaram a face da eternidade.
Com a anistia, voltei ao Vale do Cricaré – região onde se concentrou o maior contingente de negros quilombolas do Brasil – com o objetivo de retomar as pesquisas para escrever A História dos Vencidos, uma série composta de 40 pequenos livros com base em depoimentos de ex-escravos, e o reencontrei no esplendor da criação, amado pelo povo, mas com uma profunda mágoa: a Ufes não o reconhecia… Não que Hermógenes quisesse ser um "mestre"; ele não dava a mínima bola para a Ufes, queria apenas que a Universidade Federal do Espírito Santo se interessasse pela cultura do povo e que levasse para a sala de aula "aquela negrada toda", mas sabe como é a elite acadêmica…
Cá entre nós, foi uma grande perda não terem utilizado a sua notável sabedoria, sobretudo na implantação do Ceunes como extensão da Ufes em São Mateus, a poucos minutos de sua residência. Aqui se prefere um "reitor" com a tradicional empáfia, que tira ouro do nariz ou anda com um 38 na cintura, em vez de alguém capaz de valorizar o casario do Porto e, sobretudo, as histórias dos quilombolas que enfrentaram um dos sistemas escravocratas mais perversos do país.
E assim vem sendo o Ceunes: inútil e realizando "semanas de arte" na circunscrição do umbigo de seus beneficiários, sempre distantes da história e da cultura da região, e por pura incompetência dos seus reitores só não fecha as portas porque é mantido com o dinheiro público, e até agora o que fez foi mudar o nome para "Pólo Universitário do Norte", dá pena… Se usufruísse da sensibilidade de Hermógenes Lima Fonseca, poderia contribuir para forjar uma revolução. Mas, como fez opção pela arrogância e o distanciamento, constituiu-se numa instituição falida.
Para se vingar da discriminação velada que sofria dos "catedráticos" e após ser cobrado por sua formação acadêmica em pleno debate na Ufes, o irreverente Hermógenes mandou imprimir um cartão de visitas que era uma preciosidade: "Armôjo – Conde do Angelim – PhD na University of Caçaroca City". A elite acadêmica que nutria uma ponta de inveja do seu enorme conhecimento antropológico, sociológico e cultural levou-o na brincadeira, mas que foi uma bela vingança, ah, isso foi. Hermógenes poderia ser para a Ufes mais do que ela necessitava para se converter de fato numa instituição pública. Poderia ser um elo com a cultura popular para que o Espírito Santo não perdesse parte significativa do legado histórico que não aprendemos nas escolas.
Recentemente, o presidente Lula sancionou a implantação definitiva da Universidade Federal de São Mateus, que não mais será uma extensão da Ufes, e terá vários cursos e estrutura organizacional para atender à demanda do norte do Espírito Santo, do sul da Bahia e do leste de Minas, numa grande atuação do governador Paulo Hartung e da bancada capixaba no Congresso.
Por ironia do destino, o prefeito municipal de São Mateus desapropriou uma imensa área para a implantação da futura universidade federal num local conhecido como Encruzo, na entrada do Sapê do Norte, onde, durante a repressão da ditadura militar um outro prefeito mandou instalar as meretrizes quando os cabarés do Porto foram fechados por ordem judicial. Nessa região, durante a escravidão, os quilombolas infernizaram as fazendas de reprodução de escravos criadas a partir da Lei Eusébio de Queirós (1850), que proibia o tráfico de negros da África ao Brasil.
A futura universidade ficará à margem da estrada velha para Conceição da Barra, que passa no povoado de Sant’Ana, antigo Quilombo do Morro, onde o Negro Rugério reinou como um dos personagens mais representativos das lutas contra o sistema escravocrata. Por volta de 1965, fui levado ao local pelo mestre Balduíno Antônio dos Santos, velho cabuleiro, quase centenário, filho de escravos e um dos raros beneficiados pela Lei do Ventre Livre. Ele apontou ali o lugar da famosa cabula do lendário Viriato Canção-de-Fogo, em cujo camucito os tatás e os camanás invocavam os bacúlos, deuses africanos que protegiam os quilombolas contra os capitães-do-mato e a Guerrilha de São Matheus, criada pelo Governo Provincial a 28 de julho de 1852 para a "apreeensão de escravos fugidos, desertores e criminosos".
O cerimonial africano, temido e perseguido pela Igreja Católica desde 1899 quando o bispo D. João Batista Corrêa Nery mandou prender os cabuleiros, já não existe. No exato local em que ele se realizava, será instalado um moderno campus universitário. E sabe quem era o jovem negro assassinado a tiro pelo "reitor"? Um dos descendentes de Viriato Canção-de-Fogo.
Instalar uma universidade federal nesse local mítico e de histórias de lutas pela liberdade com certeza foi mais uma outra doce vingança de Armôjo, o Conde do Angelim, que deve ter chegado lá no céu distribuindo aquele inusitado cartão de visitas e juntado o creoléu: "Agora vamos criar a Universit of Caçaroca City onde eles menos esperavam…" Acudiram calhambolas, canhemboras, canhamboras e canhambolas de todo o Brasil, conspirando, no plano imaterial, para que, definitivamente, a elite acadêmica capixaba, de uma forma ou de outra, seja obrigada a reconhecer os personagens esquecidos pela historiografia oficial.
Com certeza, as lutas de Hermógenes Lima Fonseca pela valorização da cultura popular, além do legado dos negros quilombolas que deixaram um extraordinário testemunho de coragem e resistência contra as injustiças dos senhores, não foram em vão…
Quanto à Ufes que matou Hermógenes, já não mais existe. Seu Departamento de História e o Incra são os responsáveis pela demarcação dos territórios quilombolas no Espírito Santo. Com a lei de cota de 20% para afro-descendentes nas universidades brasileiras, "aquela negrada toda" vai finalmente invadir as salas de aula, e sem o receio do disparo do tiro do reitor.
Como diria Armôjo: "é melhor não bulir com Cabula…".
*Maciel de Aguiar é escritor, ex-secretário de Estado da Cultura do Espírito Santo e reside no Porto de São Mateus.
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