Rudolfo Lago *
Há um padrão desconcertante que marca uma série de eventos desta que muito provavelmente foi a pior legislatura da história do Congresso brasileiro – especialmente da Câmara dos Deputados.
O padrão está na eleição de Severino Cavalcanti para presidente da Câmara. Está na absolvição da grande maioria dos mensaleiros. Está no perdão aos sanguessugas. Está na decisão de se autoconceder um aumento nos salários de mais de 90%. Eis o padrão: em todos esses episódios, os senhores parlamentares deram uma vistosa banana para a opinião pública e estabeleceram um cordão de proteção dos seus pares, de seus esquemas e do que existe de pior em seus comportamentos.
Políticos são especialistas em sobrevivência. De quatro em quatro anos, têm de se submeter ao complicado vestibular do voto para prosseguir com as suas carreiras. Se a partir dessa legislatura, boa parte deles começou a estabelecer como padrão dar pouca importância para os conceitos da opinião pública é porque encontrou alguma forma de manter o seu percentual de votos mesmo assim. Há alguma coisa muito séria que precisa ser avaliada nessa história: se os políticos não agem como nós gostaríamos e mesmo assim continuam sendo eleitos, a ponto de não mais se preocuparem com o que a média da sociedade esclarecida vai pensar sobre o que fazem, em que pontos então eles estão sendo testados e aprovados? Será que o eleitor ficou tão cínico quanto a classe política que elege e publicamente assume um determinado grupo de valores que não são os mesmos na solidão da cabine de votação? Ou há um problema que precisa ser corrigido no nosso sistema eleitoral, especialmente no voto proporcional para deputado?
Há uma reforma política em discussão. Que vá adiante e encontre a receita para a mudança necessária. O fato é que o conjunto de coisas que compõe o atual sistema faliu e precisa ser reformulado. Em todos os escândalos anteriores que estouraram no Congresso em outras legislaturas, havia sempre um fator determinante nas discussões e nas atitudes que os deputados tomariam para sanar o problema: a necessidade de uma satisfação à opinião pública.
Foi assim quando se decretou o impeachment do presidente Fernando Collor. No episódio dos anões do orçamento, foram feitos acordos de proteção mútua, especialmente no PFL, mas vários deputados foram cassados. O senador Luiz Estevão não escapou. Para não serem cassados, Antonio Carlos Magalhães e José Roberto Arruda tiveram de renunciar quando se descobriu que haviam violado o sigilo do painel do Senado na votação da cassação de Estevão. E depois Jader Barbalho fez o mesmo, por conta das denúncias contra ele por corrupção na Sudam e na reforma agrária. Já no início do episódio do mensalão, os envolvidos começaram a se movimentar no Congresso buscando apoios em torno do mesmo argumento: seus colegas não deveriam aceitar que servissem de bucha de canhão para satisfazer a opinião pública. Porque depois, diziam, o alvo seriam eles.
Boa parte desses mensaleiros estará de volta ao Congresso no ano que vem. Escaparam da cassação e foram redimidos ainda pelo crivo do voto dos seus eleitores. Por quê? Porque fizeram uma descoberta terrível nessa legislatura: se montassem bem azeitadas estruturas assistencialistas para seus eleitores, se criassem redes de proteção com os prefeitos das suas bases à custa de dinheiro público do orçamento, se reservassem recursos para uma cara campanha eleitoral, eles poderiam dar uma bela banana para a opinião pública. Não precisariam mais manter o comportamento que a sociedade que lê jornal expressa porque estavam estabelecendo pontos de contato direto com os seus eleitores que já não passam mais pela intermediação da mídia. Criaram um compromisso de voto que é egoísta, baseado na resposta ao anseio básico de seu eleitor e numa campanha que baseia a sua mensagem no seguinte: “Se você quiser continuar obtendo determinado favor, precisa continuar me elegendo”.
Um levantamento feito pela assessoria técnica do PSB indica que 68% do próximo Congresso será formado por políticos de perfil assistencialista, que baseiam seu voto exatamente nesse tipo de troca material de favores com o eleitor. O líder do PSB, Alexandre Cardoso (RJ), observa que a maioria deles criou um tipo de estrutura semelhante. Monta centros comunitários, administrados por organizações da sociedade civil, controladas por eles, que podem receber dinheiro público. Ali, o eleitor recebe em sua comunidade alguns serviços essenciais que o falido Estado brasileiro não provê: assistência médica, odontológica, apoio social, etc. É claro que existe um lado positivo: a parcela mais pobre da sociedade precisa mesmo de assistência. Mas, em primeiro lugar, isso não deveria ser função de deputado federal, que deveria estar pensando na forma de resolver os grandes gargalos estruturais, econômicos e políticos do país, e como alterar legislações para resolvê-los. E, além disso, é por aí que vai se formando o concreto que consolida em parte da classe política a certeza de que pode contrariar a opinião pública sem receio de punição.
Fruto de um Estado falido, também assistencialista, de um país que insiste em manter e até aprofundar as suas enormes distâncias sociais, surge assim o novo coronelismo. O voto se troca por esses favores materiais. Estabelece assim um vínculo de compromisso eterno entre o político e o eleitor. Se o político cumpre a sua parte em prover esses favores básicos, o eleitor fica satisfeito. E não importa mais tanto se o político é acusado por roubo, corrupção ou se acha justo dobrar seu próprio salário. Há coisa de uns 50 anos, o humorista Stanislaw Ponte Preta já dizia: “Ou restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos”. A moralidade não se restaurou. Ainda que mantidos os percentuais de desigualdade da sociedade brasileira, cumpriu-se a profecia.
* Jornalista há 20 anos, Rudolfo Lago, Prêmio Esso de Reportagem em 2000, foi repórter político de algumas das principais redações de Brasília. Hoje, é editor especial da revista IstoÉ e produz o site http://www.rudolfolago.com.br/.
Deixe um comentário