Marcos Woortmann *
Se quisermos falar em democracia nesta crise, é preciso falar de política em perspectiva, e não apenas de conjunturas de curto prazo.
Ouvir as massas é o clamor de muitos, porém o silêncio dos que não se representam nesse embate entre governo e oposição é também uma posição política. As ruas diversas vezes já condenaram inocentes e libertaram ladrões – algo que aos cristãos politizados ressoa fortemente. As ruas já impuseram ditaduras, perseguiram gays, minorias religiosas, e lincharam descendentes de escravos em democracias vigentes. Contudo, as mesmas ruas também derrubaram ditaduras e fizeram as mais belas revoluções da humanidade.
O que difere manifestações tão antagônicas? A resposta passa por quem as inspira. Atualmente, contudo, muito é organizado espontaneamente. Assim foi no ano de 2013, e hoje pagamos o preço das ruas não haverem sido ouvidas. Infelizmente, se houve algo belo três anos atrás, hoje a violência e a histeria também se apresentam nas ruas pedindo abertamente ditadura e violação de direitos humanos, corroborando Umberto Eco quando este denunciou que a internet deu voz aos imbecis. Quando vemos nulidades absolutas como o líder do Movimento Brasil Livre (MBL) escrevendo em jornais prestigiados, citando os Changeman, monstros versus heróis e bem contra o mal, vemos a força da imbecilidade no debate atual.
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O senador romano Marco Túlio Cícero nos legou a pergunta que deve nortear momentos como o que vivemos: Cui bono? Há 21 séculos Cícero ficou sem resposta, e as instituições de então lentamente ruíram frente à corrupção generalizada, destruindo sua república. A nós, cabe traduzir sua pergunta: quem se beneficia da crise que vivemos, hoje?
Atualmente repete-se no Brasil o ciclo histórico de esgotamento da representatividade de nossa democracia, herdeira de muito do obscurantismo do período autoritário, ora em contradição com o espírito de renovação próprio da democracia. Nunca vivemos mais que 30 anos num regime político aberto, nunca havendo sequer uma geração de pais e filhos que se constituíssem como sujeitos políticos sem a sombra de uma ditadura. Pela primeira vez é possível aprofundar e reinventar a democracia, democraticamente. Mais que isso, essa reinvenção é necessária para que a história não se repita enquanto farsa e tragédia – com a licença de Hegel.
PublicidadeEntão…quem se beneficia? Raymundo Faoro nos anos 1950 denunciou os donos do poder. Hoje se representam no princeps Michel Temer e no PMDB. Sua denúncia é a resposta à pergunta de Cícero.
Um impeachment parcial, que consagre indiretamente aquilo que as ruas jamais elegeriam, será a apropriação completa do poder pela aristocracia política que nunca o deixou. Somente seria democrático se, no mesmo ato, Dilma Rousseff e Michel Temer fossem cassados juntos, sob sólidas e inegáveis provas. Assim, é fundamental desfazer a armadilha do impeachment atualmente em curso, o que possibilitará a pressão das ruas ser direcionada ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), única instância legítima e com poderes para destituir ambos o PT e o PMDB – estes últimos os verdadeiros donos do poder, epicentro de todas as crises escândalos de nossa história recente.
Se hoje a democracia está ameaçada pelos abusos de Dilma Rousseff e do PT, num governo ilegítimo de Michel Temer e do PMDB ela será indubitavelmente lançada ao cadafalso, sob os aplausos das massas cuidadosamente escolhidas, alimentadas pelas celebridades descartáveis de ocasião. Novas eleições via Tribunal Superior Eleitoral são o único mecanismo capaz de reverter a baixíssima representatividade da Presidência.
É ilusão acreditar que presentear o poder ao PMDB será um triunfo da democracia. Não será. Será a farsa e a tragédia da democracia brasileira, pois as ruas não sensibilizarão um Congresso que representa apenas a si mesmo. Dominado pelo mesmo PMDB de Michel Temer, denunciado internacionalmente e detentor do controle das presidências da Câmara e do Senado, este Congresso não tem estatura moral para salvar a democracia. É cúmplice dos crimes cometidos pela presidente e por seu vice.
Se o impeachment atualmente em curso for aprovado, o Congresso será, legalmente, o algoz de nossa democracia. O princeps será coroado e serão necessárias várias gerações para abrir-se a janela da renovação da democracia no Brasil novamente.
* Cientista Político e mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília.
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