Sandro Amadeu Cerveira *
A presença de dois candidatos à Presidência da República, Marina Silva e Pastor Everaldo, em torno dos quais gravitam figuras polêmicas como Silas Malafaia colocou em pauta novamente o chamado “voto evangélico”. Essa expressão parece ser capaz de ativar uma série de imagens, sentimentos, conceitos e preconceitos, muitos deles contraditórios. Se para alguns o termo “evangélico” já é incômodo, o “voto evangélico” então pode causar arrepios, náuseas, urticárias e outras reações. Mas, afinal de contas, existe mesmo um “voto evangélico”? Esse “voto” possui as características que lhe atribuem? Em meio a tantas falas e estudos qualificados há algo ainda a ser dito?
A abordagem talvez mais comum sequer questiona a existência de um voto evangélico. Ele é dado. Existem evangélicos, eles votam em outros evangélicos (ou em quem seus pastores mandarem) e os eleitos agem sempre de forma coerente com o “ser evangélico”. A chamada “bancada evangélica” é a prova irrefutável deste “fato”. Há ainda outra certeza. O não avanço das pautas relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos, assim como de outros direitos humanos, é culpa dos eleitores evangélicos. São eles em sua sanha moralista e teocrática que ameaçam a democracia com o retorno ao obscurantismo.
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De outro lado há quem afirme que os “evangélicos” sequer existem. O argumento neste caso é de que a pluralidade dos chamados evangélicos é tão grande que é virtualmente impossível falar em “evangélicos”. Afinal que afinidade existe entre um presbiteriano e um assembleiano? Entre um membro crismado da Igreja Evangélica Cristã Luterana no Brasil (IECLB) e um frequentador da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd)? Se não existem os “evangélicos”, podemos supor que tampouco exista o “voto evangélico”. As pesquisas que apontam para a correlação entre autoidentificação religiosa e a preferência por um ou outro candidato (ou mesmo a afinidade com pautas conservadoras) seriam correlações espúrias. Mera coincidência ou acaso.
PublicidadeO bom senso nos recomenda desconfiar desses polos (caricatos) que apresentei. Tratar o “voto evangélico” ou mesmo os “evangélicos” como um bloco efetivamente desconsidera a grande pluralidade que existe entre os que assim se definem. Essa abordagem também parece ignorar que a religião é somente uma das dimensões da vida de uma pessoa, entre tantas outras. Pesquisas indicam que o fato de o “evangélico” ser homem ou mulher, rico ou pobre, nordestino ou gaúcho, analfabeto ou pós-graduado pode fazer muita diferença em uma série de questões.
Apenas para ilustrar, observemos os dados pesquisa Datafolha publicada em 29 de agosto. Segundo esse levantamento, 38% dos eleitores que se dizem católicos votariam em Dilma, enquanto “apenas” 30% dos evangélicos votam na candidata petista. Quando se trata de Marina os números se invertem: 41% dos evangélicos pentecostais votam em Marina e somente 30% dos católicos na candidata do PSB. Conclusão? Há um “voto evangélico” em Marina. Mesmo? Que “voto evangélico” é este se quase 60% dos evangélicos NÃO votam em Marina?
Por outro lado, afirmar que os evangélicos simplesmente “não existem”, em virtude das grandes diferenças internas às denominações de matriz protestante é também um equívoco. A heterogeneidade dos grupos e fenômenos sociais não nos exime do esforço de conceituação e generalização. Estas estratégias/ferramentas são importantes no desafio de pensar o mundo multifacetado e multicondicionado que nos cerca. O conhecido sociólogo Max Weber já alertava que um “tipo ideal” não existe no “mundo real”, mas eles podem ser úteis para operar e pensar a realidade. Para além da questão metodológica, a Frente Parlamentar Evangélica existe e, a menos que analistas e políticos estejam redondamente enganados, sua existência se deve (ainda que parcialmente) à concentração de votos de evangélicos em candidatos que assim também se apresentam.
Agradecido pela paciência do leitor até aqui, chego a minha tentativa de dizer algo sobre o assunto. O que chamamos de “voto evangélico” existe sim, mas ele é uma “invenção”. Como dito antes, ser evangélico (católico, espírita sem religião etc.) não é a única dimensão da identidade de uma pessoa que pode ser mobilizada politicamente. Quem trabalha ou estuda marketing político sabe que boa parte do esforço dos partidos e candidatos se concentra precisamente em tentar ativar, entre as muitas dimensões importantes em nossas vidas, aquela que lhes é mais favorável. Criar uma “conexão eleitoral” para criar uma base eleitoral. Embora os eleitores não sejam passivos nesse processo, o protagonismo é, via de regra, dos candidatos.
Até as eleições para o último Congresso Constituinte a presença de evangélicos na política pouco ou nada tinha a ver com um “voto evangélico”. O discurso predominante era de que “crente não se mete em política”. Os eventuais sucessos de candidatos evangélicos nas urnas raramente contou com a bênção de suas igrejas. Em 1986, algo mudou. O número de deputados evangélicos saltou de 12 para 32, sendo que a maioria (18) agora eram oriundos de igrejas pentecostais. A estratégia de lançar “candidaturas oficiais”, legitimadas pela pregação de que “Irmão vota em Irmão” foi parte da estratégia de algumas igrejas no sentido de criar, ou para usar meu termo provocativo, “inventar” os eleitores para esses candidatos. Os estudiosos das estratégias usadas pelos parlamentares na busca pela reeleição apontam que a “sinalização” de temas ou ideias é uma das principais estratégias usadas por políticos cuja votação não está geograficamente concentrada. São necessários estudos mais detalhados sobre o sucesso dos políticos evangélicos em suas tentativas de reeleição, mas, ao que parece, aqueles que têm conseguido o aporte de recursos (simbólicos e materiais) das igrejas em suas campanhas e obtido maior visibilidade durante seus mandatos em temas importantes para os que se identificam como evangélicos vêm sendo os mais bem-sucedidos.
Um das estratégias utilizadas na construção de uma base eleitoral (não apenas dos evangélicos) é justamente a simplificação e a redução de temas complexos a frases de efeito e jargões carregados emocionalmente, não raro marcados pela chave “amigo-inimigo”. Um candidato evangélico típico bem-sucedido será então aquele que convencer um número suficiente de evangélicos de que devem votar nele por representar não tanto os interesses, mas seus valores e crenças na arena política. Como as crenças e valores adotados pelos “evangélicos” variam muito, é preciso recorrer a termos genéricos, carregados emocionalmente e familiares ao contexto linguístico do grupo fortalecendo a sensação de pertencimento. Termos como “governo dos justos”, “ditadura gay”, “abortistas” ativam esperanças, medos e ódios bastante poderosos que podem virar votos.
É claro que as estratégias das igrejas e dos políticos para criar o “voto evangélico” não seriam eficazes se todo seu discurso não fizesse sentido para pelo menos parte dos fiéis eleitores. De qualquer forma, se votar como evangélico não é algo dado ou “natural”, precisamos nos debruçar sobre seus efeitos, e não apenas sobre o sistema político. Questões como distorções na representação ou mesmo a defesa de pautas contrárias a direitos de minorias são os exemplos mais conhecidos. Por outro lado, o próprio campo evangélico pode estar sendo “colonizado” pela lógica e pelos interesses dos políticos evangélicos em detrimento de sua dimensão propriamente religiosa.
* Teólogo, historiador e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o autor é professor da Universidade Federal de Alfenas (Unifal), em Minas Gerais.
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