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Cristovam Buarque *
Para mim, seria difícil ficar fora desta sessão de hoje, porque acho que este é um ano que merece refletirmos sobre ele e sobre os que virão daqui para frente.
Nesses últimos dias, muitos me perguntam como eu definiria o ano de 2015, com todas essas conturbações que tivemos desde o início. Eu disse que eu o definiria como o ano da descoberta do Brasil. A descoberta de um Brasil que está escondido ou estava escondido e que está aflorando finalmente. Isso é muito bom, desde que a gente aprenda, com a descoberta, a saber o que fazer nos anos de 2016, 2017, 2022 – o nosso bicentenário, que está chegando – e nos anos do futuro.
Este é o ano da descoberta, por exemplo, de uma crise que um observador mais atento perceberia. E eu quero dizer que alertei! Alertei desde 2011, com discursos, com textos, com artigos. Lembro-me do título de um texto, de um pequeno folheto que fiz com um assessor meu, cujo título era: “A educação está bem, mas não vai bem”. Isso porque os indicadores naquele momento – de inflação, de emprego, de câmbio – eram bons, mas há coisas por debaixo da realidade que, se observarmos, dá para perceber.
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Colombo não chegou na América sem que já houvesse sinais de que existia o continente, embora, no fundo, ele quisesse ir para a Índia, pelo outro lado. Mas havia sinais de que havia terra no meio, e ele teve a ousadia de ir atrás.
PublicidadeHavia sinais de que as coisas não estavam bem com a economia brasileira. Por exemplo, via-se que os gastos públicos estavam excedendo os limites da responsabilidade; nem digo fiscal: da responsabilidade, ponto. Havia sinais de que a gente estava gastando mais do que deveria.
Pior: havia sinais de que a gente estava gastando mais do que podia em itens que não trariam resultados para dinamizar a economia; itens até necessários, como pagar o passado, as dívidas que contraímos. A dívida com os aposentados é uma dívida com o passado. A dívida com a população pobre é uma dívida contraída por não termos feito o investimento no futuro, como agora; vamos pagar um preço altíssimo por não estarmos investindo em educação corretamente, porque o problema não é só de falta de dinheiro; se chover dinheiro hoje, no quintal de uma escola, ele vai virar lama na primeira chuva.
É preciso gastar mais, sabendo gastar melhor. Nós gastamos com o passado, nós não gastamos com o futuro, com a infraestrutura, com as crianças. Dava para ver que isso ia estourar. Na economia, chamamos de bolhas esses gastos sem lastro – um dia, alguém mete um alfinete e estoura. Foi isso que aconteceu, os gastos públicos funcionaram como uma bolha, que estourou.
Esse era um item que dava para perceber que aconteceria, até porque as regras, muitas delas que nós criamos aqui, obrigam a gastar mais do que é possível. E as pessoas perguntam: “Mas como se pode gastar mais do que é possível se a gente não pode fazer isso em casa?” Há duas maneiras: endividando-se, e é o que fez o Brasil, ou inflação, que é o que está fazendo o Brasil. Inflação é uma maneira de gastar mais enganando a todo mundo, como se estivesse gastando dentro dos limites, porque você gasta 100, mas só vale 80. Então, havia essa indicação. Nós descobrimos em 2015, já estava latente desde 2011.
Nós desarticulamos as estatais, isso descobrimos em 2015, mas havia claro sinal de que isso ia acontecer. O que estourou – mais uma vez, a ideia da bolha – na Petrobras já vinha sendo feito, já se percebia que se estava usando a Petrobras de uma maneira política e não de uma maneira empresarial. Nós criticamos, obviamente – e esse é um item seguinte de descoberta, que é a corrupção –, mas o que eu estou falando aqui da Petrobras não é a corrupção, é a manipulação, é manter o preço do combustível baixo para ganhar voto, sabendo que isso ia quebrar a Petrobras. Dava para ver. Quantos discursos alguns de nós não fizemos aqui dizendo que não dava para segurar o preço do combustível, porque, depois, o aumento seria muito pior?
É a mesma coisa das tarifas elétricas. Eu fui acusado aqui de não querer que reduzissem as tarifas elétricas, eu recebi críticas. Um senhor disse que eu não estava querendo que os pobres tivessem ar-condicionado, porque eu dizia que era um risco reduzir as tarifas, uma vez que elas depois viriam aumentadas muito mais, e eu respondi para ele que eu queria, sim, que os pobres tivessem ar-condicionado, mas, para isso, seria preciso que os ricos desligassem os deles, porque não havia energia para todos ao mesmo tempo. E propus a ele que ele só usasse o ar-condicionado dele seis meses para que outro pudesse usar seis meses. Pois bem. Estava claro que aquela redução das tarifas de energia iria gerar esse problema. Nós descobrimos em 2015, mas havia sinais já em 2014.
“Prédio público de luxo em um país sem água, sem esgoto nas casas, é corrupção nas prioridades”
E ele nos ajuda também a descobrir a partidarização do processo político em que, em vez de termos um processo político em que os partidos estão para servir ao país, ao povo, à nação, nós nos acostumamos a que os partidos estejam aí para servir aos partidos, para continuar no poder e não para exercer o poder a serviço do povo. Tanto estamos acostumados com esse sentimento de corrupção que ainda não usamos a palavra corrupção para os equívocos nas prioridades. Só usamos corrupção para o comportamento do político e não para as prioridades das políticas públicas. Investir em uma obra que não seja necessária para o bem do povo e do país é corrupção, mesmo que ninguém ponha dinheiro no bolso. Quando aquele prédio do TRT terminou gerando cadeia para um juiz e um político por colocarem dinheiro no bolso, houve a preocupação com a corrupção no comportamento, felizmente, mas havia outra corrupção por trás. É que a 100, 200, 500 metros dali havia gente sem esgoto, e fizemos um prédio de luxo para o serviço público. Isso é corrupção! Prédio público de luxo em um país sem água, sem esgoto nas casas, é corrupção nas prioridades.
O ano de 2015 ainda não permitiu percebermos a corrupção nas prioridades. Teremos que esperar um pouco mais para comemorar a descoberta de que é roubo investir erradamente do ponto de vista das prioridades, dos interesses nacionais, dos interesses do povo, mesmo que ninguém roube para si. Pelo menos, descobrimos, em 2015, o tamanho da corrupção que caracteriza o que não vou chamar de prática sociopolítica, mas de prática social brasileira, especialmente na política.
Foi em 2015 que fiz um discurso muito criticado em que eu dizia que era preciso acabar com todos os partidos e criar novos. Os partidos interpretaram, nessa manipulação que caracteriza a política brasileira, que eu estava dizendo que era preciso fazer política sem partidos. Não. Eu defendo que a pessoa possa ser candidata sem partido; eu, defendo, como em muitos países do mundo, o chamado candidato avulso. Mas a política precisa de partidos com p maiúsculo, e não de partidos com p minúsculo, que são clubes eleitorais, são siglas apenas.
E 2015 ajudou a descobrir a fragilidade dos nossos partidos, todos, sem exceção. Não venha nenhum dizer que é diferente, tanto que caracteriza, de fato, um partido com identidade ideológica clara, com identidade ética clara entre todos os seus militantes, participantes. Não há. Isso leva ao descrédito.
Leva ao descrédito também o fato de que nós fazemos politica prisioneiros do imediato, do curto prazo. Nós fazemos política como se o Brasil acabasse a cada quatro anos e começasse de novo a cada quatro anos por causa das eleições. O Brasil transcende os anos eleitorais, ele vai além. E nós políticos não estamos conseguindo pensar isso. O Brasil existe até 2018, depois até 2022, depois até 2026, conforme a eleição que nós disputamos. Para os vereadores, os prefeitos, é 2016, 2020, 2024, como se fosse um país de saltos e não um país de continuidade. Isso está desmoralizando, porque não vemos a longo prazo, não falamos o que vai ser o Brasil daqui a 20, 30 anos. Aqui dentro, não aparece.
E aí votamos uma quantidade imensa de leis para este ano em cima de seu final, até porque, como, nesta semana, em que eu participei de um debate em uma das comissões, se não aprovássemos a lei até agora, ela não entraria em vigor no próximo ano. Logo, isso sacrificaria alguns grupos – grupos, não o país. Gente, aprovar porque tem que ser até 2017, 2019, 2020? E o século 22?
“O Brasil na campanha de 2014 era o das tarifas elétricas baixas. Em 2015, é das tarifas altas. O povo descobriu essa manipulação”
Foi o que a gente viu. O Brasil que apareceu na campanha de 2014 era o das tarifas elétricas baixas. O Brasil que apareceu em 2015 é o das tarifas elétricas altas. O povo descobriu essa manipulação. O ano de 2015 é o da descoberta do Brasil real, do Brasil em que a gente falseia o processo eleitoral.
Até aqui, a gente nunca tinha visto com tanta nitidez a diferença, o divórcio entre promessas e programas na hora de executá-los. Isso não tinha sido visto com tanta nitidez, até porque, como não havia reeleição, não havia candidato presidente, salvo dois antes. Foram duas experiências de reeleição apenas. É nessa terceira que se demonstrou a farsa de uma presidente candidata mostrando um Brasil que ela teria feito, o que não era verdade, e propondo um Brasil que ela faria, o que não seria a verdade.
Essa manipulação traz problemas muito sérios, e a gente não percebia. O ano de 2015 é o da descoberta do Brasil manipulado na política. Essa manipulação traz, a meu ver, uma descoberta que é muito triste para mim: é a manipulação de usar como um programa o que não passa de um slogan, que é a ideia da pátria educadora. O ano de 2015 mostrou que a ideia de pátria educadora tem sido apenas um slogan. Nossas crianças continuam sem se alfabetizar na idade certa, nossos jovens continuam sem terminar o ensino médio, os 40% que o terminam continuam sem qualificação para enfrentar o mundo. Continuamos com 13 milhões de analfabetos adultos, e a torneirinha que pinga analfabetos adultos continua aberta. A gente descobriu isso em 2015.
A gente descobriu que o Ciência sem Fronteiras, esse programa tão bom, criado pelo governo atual, do governo de Lula para cá, não tem consistência para continuar por falta de dinheiro, e foi prometido que continuaria.
Por isso é que se faz impeachment. No caso do parlamentarismo, tira-se a confiança, e ele cai, sem nenhum trauma, sem nenhum problema. Presidente, não. Presidente, para cair, tem de passar por um processo muito cuidadoso, rigoroso, porque ele não é só chefe de governo, ele é chefe da nação, do Estado.
Chefe de Estado não deveria ter partido, como imperador não tem partido, rei não tem partido. Chefe de nação tem de estar acima de tudo. Qualquer que seja, com um novo presidente, pelo impeachment, com a presidente atual, sem impeachment, tem de assumir que não está aí para servir ao seu partido nem aos partidos da sua coalizão. Tem de dialogar com as oposições, tem de ouvir os críticos. A atual presidente faz de conta que os ouve, mas não ouve. Ouvir é assumir aquilo que ouve. E isso a gente não vê.
“O Brasil não está apenas em uma crise, está no início de um processo de decadência”
A gente vai precisar em 2016 descobrir que o Brasil continua com os mesmos problemas, com as mesmas necessidades, sobretudo a necessidade de querer construir um novo país, um novo País cuja primeira preocupação deve ser parar a decadência em que estamos caminhando. Hoje, o Brasil não está apenas em uma crise; hoje o Brasil está no início de um processo de decadência. A diferença é que, na crise, em dois ou três anos, a gente sai dela; na decadência, precisa de uma ou duas gerações para dela sair.
A recessão é o PIB não crescer; a decadência é o PIB ficar preso aos bens primários, não ter um componente de alta tecnologia nos produtos que cria, não ser inovadora, como a brasileira. Crise é, um dia, haver uma greve de professor; decadência é haver dezenas de greves de professor a cada ano, centenas, aliás. Decadência é ficarmos para trás em relação aos outros países no que se refere à educação de nossas crianças. Isso não é crise, isso é decadência. Crise é haver uma epidemia circunstancial; decadência é não sermos capazes de controlar os mosquitos deste país, em pleno século 21. Nós nos acostumamos tanto com as coisas no nosso país, que a gente acha que, em todo lugar do mundo, há mosquitos infernizando a vida das pessoas. Não, em muitos países, já não há mosquitos infernizando a vida das pessoas.
Mas não aprendemos isso ainda, porque não aprendemos a mobilizar a população, porque não usamos os recursos disponíveis. A primeira coisa, então, é parar essa marcha à decadência, para a qual, como tudo indica, o Brasil está caminhando.
Eu temo que, da mesma maneira que tantos avisos aconteceram para identificar a crise – e foi preciso esperar 2015 para a descoberta dela –, a gente precise esperar mais uns cinco, seis ou dez anos para descobrir a decadência. Quando nossos cientistas já tiverem ido embora, como aconteceu com a Argentina. Quando o nosso PIB já não for capaz de reagir às necessidades de uma população que cresce. Quando nós perdermos toda a capacidade de usar a inteligência do povo brasileiro por falta de educação. Quando o Brasil começar a mostrar que é um país secundário, insignificante, no cenário das nações. Eu temo que, para comemorar o dia, o ano da descoberta da decadência, tenhamos de esperar uma década, e aí será uma década mais do que perdida, será a década em que afundamos.
O que é perdido a gente acha, mas, se afundar, dá trabalho sair do buraco.
Então, qualquer que seja o presidente em 2016, com impeachment ou sem impeachment, vai ter de entender seu papel de ser mais do que uma pessoa de partido, de conviver com todas as forças políticas, de barrar o processo de decadência, de sair da crise e de definir as linhas de ação para construir a nação que nós queremos e que nós podemos e sabemos como fazer.
É isto, senador Acir [Gurgacz, do PDT-RO, que presidia a sessão do Senado na qual Cristovam fez este discurso], que espero que 2016 possa ser: o ano do início da construção. Digo que será o início da construção, é claro, sem querer menosprezar todos aqueles que já fizeram sua parte no passado na construção deste país. Ele não vai começar. A palavra “início” é no sentido de um reinício, de um recomeço, de um reencontro nacional do Brasil com seu destino. Hoje, o Brasil e o seu destino estão interrompidos, cortados. Nós não estamos hoje convivendo com nosso destino. Nós paramos. Paramos. Em 2015, paramos. Descobrimos isso, felizmente, porque começou há muito tempo, não é uma invenção de 2015, não é uma invenção da presidente Dilma, vem de antes, vem de não termos feito o dever de casa muitos anos atrás. Para mim, principalmente, na educação das crianças.
Mas uma porção de outros deveres também nós não fizemos, inclusive ao nos acostumarmos – e a nossa Constituição é pródiga nisso – em termos direitos, e não deveres.
Este é um dos grandes erros nossos: nós colocamos uma Constituição de direitos, não de deveres. É como se o país existisse para cada um de nós, e não a gente também para o país. Pois bem, esperemos que, em 2016, esse processo se encerre, o da descoberta, e comecemos o período de reconstrução, de retomada do Brasil com o seu destino. Isso não vai ser resolvido por haver ou não impeachment. Estão iludidos os que acham que o impeachment é suficiente para iniciar um novo Brasil. Também estão iludidos os que acham que a continuação do Governo Dilma será suficiente para levar o Brasil ao destino que temos o direito de querer e a obrigação de construir. Que 2016 seja um ano de construção, não apenas de descobertas, e que seja um ano feliz para todos nós, individualmente, porque é preciso lembrar que, embora seja muito difícil ser feliz quando o Brasil vai mal, de qualquer maneira existe uma dimensão privada, individual, da qual a gente não pode esquecer. E é pensando nessa dimensão individual que a gente não pode esquecer que eu desejo a cada um de vocês, crianças, adultos, velhos, homens, mulheres, brancos, negros, índios, qualquer um de nós que tem o privilégio de se sentir brasileiro e de poder dizer que é brasileiro, brasileira, eu desejo um feliz 2016.
* Cristovam Buarque é senador (PDT-DF). O presente texto é o discurso feito por ele, em sessão deliberativa do Senado, na última sexta-feira (18 de dezembro).
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