*Julyver Modesto de Araujo
Neste domingo (22), o atual Código de Trânsito Brasileiro completa 19 anos de vigência. Após 31 Leis que o alteraram, com o complemento de 655 Resoluções do Conselho Nacional de Trânsito e com a possibilidade de ser revogado e substituído pelo projeto de novo Código de Trânsito em tramitação na Câmara dos Deputados (PL n. 8.085/14), quais são as principais questões que ainda não foram resolvidas para promover o trânsito em condições seguras e que são objetivo maior de todo o Sistema Nacional de Trânsito?
Ressalto 4 assuntos que, apesar de constarem da legislação de trânsito, até agora não são realidade por completo e prejudicam as ações desenvolvidas em prol da segurança viária:
1) Municipalização do trânsito
Quando substituiu o Código de Trânsito de 1966, uma das bandeiras levantadas como inovadoras no atual CTB foi a gestão municipal do trânsito, com a transferência de responsabilidades – antes eram exclusivas dos Estados (por meio do respectivo Detran) – com o planejamento viário, as soluções de engenharia e intervenção na via, a implantação de sinalização e a fiscalização de trânsito (em especial no tocante ao uso da via).
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O § 2º do artigo 24 estabeleceu, expressamente, a necessidade de integração ao Sistema Nacional de Trânsito, para que o município possa exercer as competências a ele delimitadas (cujas regras necessárias à sua efetivação estão, hoje, regulamentadas pela Resolução do Contran n. 560/15). Todavia, não houve a previsão nem de prazo para que os municípios se adequassem à nova realidade, nem tampouco regras de transição e de competência subsidiária a permitir que o Detran pudesse continuar exercendo as competências a serem transferidas ao município, até que este estivesse em condições de assumi-las (embora isso esteja ocorrendo em muitos Estados, o que é juridicamente questionável, posto que a competência de órgão público deve ser decorrente de lei e não, simplesmente, presumida).
PublicidadeConclusão: atualmente, dos 5.570 municípios brasileiros, apenas 1.515 estão integrados ao SNT – sendo certo que alguns deles apenas no papel, pois o órgão de trânsito ou não existe ou não funciona nos termos em que deveria -, o que representa tão somente 27%, muito embora sejam as localidades com maior frota veicular. Como não houve, ressalte-se, prazo fixado (e nem há consequências expressamente previstas para a omissão), os municípios menores simplesmente não assumem os cuidados com o trânsito como se imaginou com o atual CTB.
Duas soluções importantes para esse fato são:
O controle externo do Poder Executivo (seja por meio do Poder Judiciário, seja pela atuação do Ministério Público), para exigir a integração municipal ao SNT; e a criação de consórcios públicos, para que um único órgão de trânsito tenha circunscrição em várias cidades, o que já é previsto como possível no artigo 6º da Resolução do Contran n. 560/15, em conformidade com a Lei n. 11.107/05.
2) Inspeção de segurança veicular
A inspeção de segurança anual, como exigência para possibilitar o licenciamento dos veículos, é obrigatória pelo artigo 104 do CTB, sendo que foi regulamentada pelo Contran já no primeiro ano de vigência do Código, com a edição da Resolução n. 84/98, que nunca entrou em vigor, pois foi suspensa pouco tempo depois pela Resolução n. 107/99.Como não ocorre tal inspeção, muitos veículos permanecem circulando nas vias públicas sem quaisquer condições de segurança e, pior, devidamente licenciados, pois, na completa maioria dos Estados brasileiros (com exceção daqueles que, por conta própria, criaram rotinas próprias), basta quitar todos os débitos pendentes (IPVA, DPVAT e multas de trânsito) para a emissão do Certificado de Licenciamento Anual, sem nem ao menos que o órgão de trânsito saiba se o veículo está ou não seguro.
Interessante que a Lei n. 13.281/16 promoveu alterações no artigo 104, a partir de novembro de 2016, para isentar determinados veículos da inspeção veicular, o que ficou bastante contraditório, pois, se nenhum veículo se submete à exigência, de que vale a exceção?
3) Educação para o trânsito
A educação para o trânsito não funciona completamente, em especial por dois motivos:
I) As Escolas Públicas de Trânsito, obrigatórias pelo artigo 74, § 2º, do CTB (e com critérios de padronização determinados pela Resolução do Contran n. 515/14) deveriam existir em todos os órgãos ou entidades executivos de trânsito, mas, ao contrário, funcionam efetivamente em apenas alguns deles. Desta forma, o Sistema Nacional de Trânsito deixa a desejar, na promoção de ações educativas para mudança comportamental do usuário da via pública, limitando sua atuação à Semana Nacional de Trânsito (18 a 25 de setembro);
II) O artigo 76 exige a educação para o trânsito em todas as áreas de ensino, por meio de planejamento e ações coordenadas entre os órgãos de trânsito e de educação, para as quais o Ministério da Educação deveria promover a adoção de currículo interdisciplinar com conteúdo programático sobre segurança de trânsito; treinamento de professores e multiplicadores; criação de corpos técnicos interprofissionais para levantamento e análise de dados estatísticos; e elaboração de planos de redução de acidentes de trânsito – o que nunca saiu do papel.
4) Aplicação dos recursos de multas
O artigo 320 do CTB é claro: Todo o dinheiro arrecadado com multas de trânsito deve ser aplicado, exclusivamente, para a melhoria do próprio trânsito: em ações de engenharia, fiscalização e educação (sendo que 95% sob responsabilidade do órgão arrecadador e os outros 5% depositados na conta do Fundo Nacional de Segurança e Educação de Trânsito – FUNSET, o qual também deveria ser direcionado pelo governo federal para a mesma finalidade).
A concepção da lei é a de que o dinheiro de multa de trânsito não deveria ser desejado, pois decorre da pena aplicada a alguém que descumpriu a legislação e, portanto, colocou outros em situação de risco; assim, o ideal seria que nenhum governante contasse com esses valores, pois o que se espera é um nível de atuação do Poder público de tal forma eficiente (incluindo a capacidade fiscalizadora), que nenhuma infração fosse cometida (e, desta forma, nenhuma multa fosse aplicada). Multa é sinônimo de infração e infração é sinônimo de insegurança.
O dinheiro que entra por esta fonte para os cofres públicos deveria ser investido em mais condições de trânsito seguro e não para pagamento de outras despesas, ainda que igualmente importantes, mas não é o que ocorre na maioria dos Estados e Municípios (e, até mesmo, no âmbito federal). Infelizmente, o desvio é a regra (e não estou a usar a palavra “desvio” como indicativo de corrupção, mas como utilização equivocada da receita).
As ações que podem ser custeadas com a arrecadação das multas de trânsito estão reguladas pela Resolução do Contran n. 638/16, devendo o gestor de trânsito atentar para sua obediência sob pena de responder por improbidade administrativa (no mínimo).
Uma modificação legal, que deve trazer um pouco mais de transparência nesta seara, foi a inclusão – pela Lei n. 13.281/16, do § 2º ao artigo 320 – que determina a publicação anual, na internet, da arrecadação e aplicação das multas de trânsito, o que permitirá maior controle e conhecimento público do que anda acontecendo.
Estas são apenas quatro falhas de aplicação do atual Código de Trânsito. Em minha singela opinião, de nada adianta uma contínua alteração da legislação de trânsito se não houver o cumprimento do que nela já se encontra previsto (e já se vão 19 anos….).
*Julyver Modesto de Araujo é especialista em Direito Público pela Escola Superior do Ministério Público de SP; capitão da Polícia Militar de SP e atual Comandante da Companhia Tática do Comando de Policiamento de Trânsito; conselheiro do CETRAN/SP; presidente da Associação Brasileira de Profissionais do Trânsito – ABPTRAN; e autor de livros e artigos sobre trânsito.
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