Seria clichê dizer que escolhi uma profissão dominada por homens porque são raras as que não são. Mas sabia que ser uma jornalista mulher não facilitaria as coisas. A maioria das vozes de jornalistas bem sucedidos que eu conhecia era masculina. Só que, mesmo assim, um dia fui parar dentro do Congresso Nacional, como repórter de política, no meio de centenas de engravatados. E nunca pensei que o meu sexo poderia determinar tantas coisas no meu trabalho.
Ser setorista – que é como chamamos os repórteres que acompanham um assunto ou local fixo – de Congresso é sobreviver numa selva. Só se dá bem quem tem fontes e consegue convencer aqueles senhores engravatados a passar informações de bastidores privilegiadas. Não é difícil deduzir que elas têm um preço. Na maior parte das vezes, eles só querem mais prestígio com a imprensa ou ainda plantar algo contra um adversário. Mas, se a repórter é mulher, fica um pouco mais caro.
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Em Brasília, é comum (até recomendado) um jornalista almoçar, jantar ou tomar um café com um político para deixá-lo mais à vontade para soltar informações. Homens fazem isso a todo instante. Mas, toda vez que uma repórter é vista nos mesmos restaurantes com algum deles, surgem centenas de comentários maldosos. Se ela consegue dar uma notícia exclusiva vinda daquela fonte, então, pode esperar: “O que será que ela deu em troca dessa informação?”
Por conta dessa visão, as mulheres que eram gentis com os políticos eram chamadas de “alisa-gravatas”. Pode até ser que algumas realmente usem a sensualidade para conseguir algo. Mas outras tantas, certamente a maioria, fazem de tudo para manter uma postura profissional, só querem ser reconhecidas pelo trabalho. Crescer por mérito próprio. Era o que eu pensava.
Vivia preocupada com a roupa que vestia, com o quanto me arrumava, para não dar brecha a mal entendidos. Nunca ia a almoços com políticos sozinha – e perdia informações por isso. Só que não era suficiente.
PublicidadeMesmo séria, eu fui assediada por parlamentares enquanto repórter do Congresso diversas vezes. Recebi de risinhos e cantadas – disfarçadas ou escancaradas – até telefonemas ousados. E não fui a única.
Um deles ultrapassou muitos limites. Era líder do governo na época. Quando me via, parava no corredor para me dar um abraço apertado demais e um beijo no rosto cheio de malícia. Eu ficava sem graça e seguia em frente. Depois de um tempo, toda vez que eu ia perguntar-lhe algo, recebia em troca outra pergunta: “e quando vamos tomar um vinho juntos?” ou “vamos conversar melhor mais tarde, no meu apartamento?”. Depois surgiram mensagens de madrugada perguntando se eu estava acordada, convites para jantar e elogios exagerados.
Uma vez eu o entrevistava no plenário e ele me convidou para ir à Itália com ele, numa viagem que faria em comitiva com outros parlamentares. Jurei que fosse brincadeira e achei graça. Ele insistiu. Eu mudei de assunto e me afastei. Eu insistia em chamá-lo de senhor, tinha conversas cada vez mais protocolares, e ele insistia nos convites. Eu inventava uma desculpa, dizia que estava cansada, que tinha que trabalhar cedo. Ou simplesmente não respondia nada.
Ele era poderoso, tinha um posto importante e era de um grande partido. Por mais que eu quisesse, não tinha como não procurá-lo em algum momento como entrevistado natural. Quando não tinha jeito, passei a pedir para meus colegas pegarem as informações de que eu precisava com ele, para não ter que falar com o deputado de novo. Obviamente nunca cedi. Mas nunca tive coragem de enfrentá-lo. Nunca o denunciei ou reclamei claramente. Por medo de me prejudicar no trabalho, apenas me calei. Depois descobri que ele havia feito isso com muitas outras. E todas se calaram. Infelizmente, não posso revelar sua identidade pois não tenho provas registradas e sei que sou eu quem poderia acabar punida – isso acontece o tempo todo no Congresso.
É claro que nem todo político faz isso. Muitos me respeitavam como profissional. Mas sei que isso acontece diariamente no Congresso e no meio político todo. Com jornalistas, com assessoras, com secretárias. Mulheres que não podem simplesmente trabalhar sem serem confundidas com um pedaço de carne.
Hoje trabalho com política de outra forma e isso não voltou a acontecer. Se acontecesse, seria bem diferente. Naquela época eu tinha medo ou até achava que eram ossos do ofício. Agora, aprendi o que é assédio e que a mulher não tem que aceitar ser vítima para garantir um emprego. O silêncio só garante que o crime vai continuar a acontecer.
* Graduada pela Universidade de Brasília (UnB) e coach formada pela Federação Brasileira de Coaching Integral Sistêmico (Febracis), teve passagens em diversos veículos como Correio Braziliense, Veja.com, R7, TV Globo, Rádio CBN, G1 e GloboNews. Também teve reportagens publicadas em revistas como Nova e Galileu. Recebeu o Prêmio Embratel de Jornalismo em 2013 e foi finalista do Prêmio Esso de Jornalismo em 2012 e 2013.
Texto originalmente publicado no blog AzMina.
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