Há muita inquietação no mercado sobre a política macroeconômica de um eventual governo de esquerda no Brasil, baseada no temor de que possam ocorrer ações intervencionistas, do ponto de vista econômico e regulatório, e gastos perdulários ou sem controle, do ponto de vista fiscal. Mas, além de não focar no principal problema do país, que é a apropriação pelo Centrão do orçamento público, o temor não tem fundamento, conforme veremos neste texto.
Em primeiro lugar, porque desde a posse do governo Michel Temer, houve uma mudança de paradigma na relação do governo federal com a sociedade e com o mercado nas dimensões liberal e fiscal, decorrente, de um lado, da rejeição do mercado a qualquer tipo de intervenção do governo em seus negócios, e, de outro, pela reprovação à ampliação do gasto público sem bases sustentáveis.
A depender desse novo paradigma, o próximo presidente da República, seja de que matiz ideológica for, dificilmente será perdulário fiscalmente, até pela inexistência de margem para tanto – devendo fazer o que é necessário, inclusive fortes ajustes com corte de gastos, e não o que lhe seja conveniente do ponto de vista político ou ideológico – ou intervencionista na economia e na regulação, com medidas que avancem sobre o lucro ou a gestão das empresas. Se isso vier a acontecer, há grande risco de o governante não chegar ao fim do mandato.
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Em segundo lugar, porque o principal candidato à esquerda do espectro político é, comprovadamente, um democrata, e já deu demonstração de que respeita as instituições e o regime democrático quando ocupou por dois mandatos a Presidência da República. Nunca flertou ou defendeu qualquer cenário que não seja o democrático, do entendimento e da negociação, com respeito à vontade das urnas e ao equilíbrio dos três setores do sistema social: Estado, mercado e sociedade.
Em terceiro lugar, porque dos três instrumentos macroeconômicos tradicionalmente utilizados para intervenções em larga escala (Política Fiscal, Monetária e Cambial), as duas últimas são executadas pelo Banco Central, que goza de autonomia operacional, inclusive com mandato de seus dirigentes. E, ainda que algum candidato queira rever tal autonomia, isso dificilmente seria prioridade em seu programa de governo e a chance de reversão do tema no Congresso Nacional é remota.
Em relação à política fiscal, Lula já deu demonstrações de seu compromisso com a alocação eficiente dos recursos públicos, focalizando-os com alto impacto nas camadas mais pobres. Na Presidência da República, quando fez alocações de recursos, tomou por base o conceito de eficiência de Kaldor-Hichs, segundo o qual existe eficiência da política “quando os benefícios totais são maiores que o custo total”.
PublicidadeQuanto à política regulatória, boa parte dela é de competência das agências reguladoras, que são autarquias com relativa autonomia funcional que desempenham as funções de fiscalizar, conduzir e regular as prestações de serviços públicos e o exercício da atividade econômica, com poderes especiais para legislar e fixar os parâmetros mínimos de funcionamento de segmentos de mercado ou das empresas de um determinado setor da economia. Além disso, seus diretores, tais como os do Banco Central, possuem mandato fixo.
Em quarto lugar, porque um governo à esquerda do espectro político no Brasil, em face da correlação de forças na política e no mercado e também da conjuntura de escassez orçamentaria, buscará fazer uma avaliação de impacto que permita uma política pública calibrada, de forma a contribuir com uma eficiente coordenação dos incentivos postos à disposição da sociedade para o atingimento de objetivos que promovam aumento de bem-estar social (Meneguim, 2017). E, para efeito da análise de cada política pública, o governante à esquerda tende a utilizar os conceitos típicos da ciência econômica, como os de eficiência, custos e benefícios e custos marginais, de que trata Posner (2007).
Em quinto lugar, a coligação do PT com o PSB, tendo Geraldo Alckmin como vice de Lula, um político com perfil liberal, já sinaliza que o objetivo não é afrontar mercado, mas evitar retrocessos institucionais.
A escolha do vice é um indicador de que um eventual governo Lula deseja garantir condições de governabilidade e isto só será possível pela via da negociação e da pacificação do país, sem caça às bruxas.
Nessa perspectiva, pode-se esperar que um eventual novo governo de Lula ou mesmo de Ciro não seja intervencionista no lucro e gestão das empresas ou perdulário fiscalmente, pois ambos já provaram que pautam suas ações como gestores pelo princípio da eficiência do gasto e do equilíbrio na relação com o mercado. Lula, no seu primeiro governo, por exemplo, fez o maior superavit primário, na média, das últimas décadas. E, Ciro, quando foi ministro da Fazenda, manteve as contas públicas sob absoluto controle.
Isto, entretanto, não significa que deixariam de utilizar o BNDES para financiar a retomada do crescimento econômico nem que deixariam de propor mudanças em algumas políticas de restrição fiscal em curso, como no teto de gasto, que impõe enormes sacrifícios aos brasileiros, especialmente aos mais pobres, que perdem espaço no orçamento. O governo Lula não revogaria o Teto, simplesmente. Ele certamente o substituiria por outra regra mais crível e transparente.
Noutras dimensões sociais, um eventual governo de esquerda irá rever, mas não revogar em sua totalidade, aspectos da reforma trabalhista, que não apenas criou novas modalidades precárias de relações de trabalho, como também dificultou a sobrevivência financeira das entidades sindicais, impedindo que elas pudessem definir seu custeio via assembleia das categorias profissionais ou via negociação coletiva.
Alguns desses aspectos serão revistos, assim como deverá propor regulamentação do trabalho por aplicativo e do teletrabalho em novas bases, dando o mínimo de civilidade nas relações de trabalho.
Igualmente, embora não pretenda ser intervencionista na economia nem irresponsável fiscalmente, terá uma postura diferente dos ortodoxos e neoliberais em relação a quatro políticas: a) a fiscal, para desengessar o investimento público; b) a comercial, com maior calibragem na abertura econômica; c) a industrial, com a adoção de alguns incentivos setoriais; e d) a de privatização, com maior cuidado na alienação do patrimônio público.
Por fim, por razões humanitárias, de preservação da vida, da defesa das liberdades e da democracia, irá reativar os espaços colegiados de diálogo de políticas públicas e rever alguns retrocessos nas políticas ambiental, cultural e de direitos humanos, colocando em prática políticas de proteção às minorias sociais e aos mais vulneráveis, que foram desprezados e/ou perseguidos nos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, como o direito à saúde e cidadania da população LGBTQIA+, entre outras.
Conforme mencionado, o principal desafio do país e do futuro presidente da República, e as forças de mercado não manifestam nenhuma preocupação com isso, é a necessidade de retomada do controle do orçamento pelo poder Executivo, que foi entregue ao Centrão pelos governos de direita. O Centrão passou a dominar o orçamento de tal modo, por meio das emendas impositivas, do orçamento secreto, dos fundos partidários e eleitoral, que, se não for modificado esse desenho, o futuro presidente da República ficará sem liberdade mínima para investir em infraestrutura, em educação, saúde e políticas sociais. E qualquer saída possível para esse problema poderá ter sérias implicações políticas e econômicas, especialmente fiscais, pela reação natural dessas forças que se apropriaram do orçamento público e não aceitarão devolver o controle de parte dessas verbas ao Poder Executivo.
Como se vê, as preocupações do mercado com eventual governo de esquerda, além de erro de foco, são exageradas ou desprovidas de fundamentos, e decorrem mais de visão ideológica do que propriamente de uma análise racional da realidade e da correlação de forças na sociedade. É dever de um governo de esquerda atuar para combater as desigualdades, a pobreza e a miséria no país, apoiar o investimento público e privado em infraestrutura, bem como promover a defesa dos direitos humanos, sociais e do meio ambiente, mas está longe da adoção do comunismo, como afirmam os bolsonaristas; está mais perto da social-democracia do que a própria esquerda gostaria de admitir.
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