Sempre ouvimos dizer que a vida imita a arte, o que é verdade, mas nunca o contrário. Seria, então, possível dizer que a arte também imita a vida? Quando comecei a trabalhar com audiovisual e ter aulas de roteiro com os maiores nomes do Cinema e da teledramaturgia nacional, algo que os autores sempre diziam é que algumas de suas maiores inspirações, para criarem boas histórias, eram os fatos publicados nos jornais, ou as histórias que ouviam nos transportes públicos, ou algum fato que havia ocorrido em suas vidas. Num desses momentos, quando a arte imitou a vida da atriz e cineasta Izah Neiva, nasceu um filme sublime, singular e impactante: O Menino da Moeda.
O curta-metragem, que se transformou em longa-metragem, atualmente em fase de captação de recursos, conta a história de Vera, interpretada pela atriz Thaís Cabral, uma mulher negra que, endurecida pela violência urbana, possui medo de pessoas em situação de rua. No entanto, acaba surpreendida por um menino, interpretado pelo ator Taylor Pretinho que, com um simples gesto, transforma a vida de Vera para sempre. Depois disso, o menino desaparece e Vera inicia uma intensa busca por ele, esbarrando nos desafios do racismo institucional e estrutural, além de suas próprias questões internas.
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“Sim, o menino da moeda existiu ou existe, eu nunca vou saber”, foi o que nos contou, em entrevista, Izah Neiva, pós-graduada em Cinema, roteirista, diretora, produtora, licenciada e bacharel em teatro pela Faculdade Paulista de Artes (FPA). Durante a estreia do curta-metragem, em São Paulo, na Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), ela relatou que, 25 anos atrás, possuía muito medo de pessoas em situação de rua e recebeu de um menino, aparentemente em situação de rua, enquanto estava parada dentro de seu carro no trânsito, uma moeda. Depois disso, nunca mais teria contato com ele, não fosse esse reencontro metafórico, possibilitado pela arte, no qual a diretora mostra as vulnerabilidades que as crianças pretas brasileiras estão expostas, como o trabalho infantil, e explora diversas teses através dos personagens, deixando no ar a pergunta: o que se pode fazer para resolver estes problemas?
“O Menino da Moeda não é um filme que eu fiz para as pessoas gostarem, é para exatamente não gostarem”. Izah conta que cresceu num lar evangélico e branco, com uma família interracial e, durante muito tempo, teve sua ancestralidade negra apagada. O medo que havia desenvolvido por pessoas em situação de rua se deu por conta dos altos índices de violência urbana, mas também por essa “desidentificação” com aqueles corpos pretos que transitavam e habitavam as ruas. É importante dizer que a pobreza brasileira é completamente atravessada por questões raciais legadas pelo processo massivo de escravização negra no país. Esse dilema, vivenciado por Izah, é algo muito comum no Brasil, mesmo para indivíduos negros, de famílias negras e pertencentes a diferentes matrizes religiosas. Há uma naturalização do corpo negro como perigoso e essa mensagem chega a todos os cidadãos brasileiros, até mesmo aos próprios cidadãos pretos, que introjetam e projetam esse medo criado pela branquitude. Essa mensagem pode chegar inclusive através da arte, que é, entre outras coisas, uma poderosa ferramenta de propagação e controle ideológico.
Existe uma obra clássica da sociologia urbana, escrita por Georg Simmel no início do século passado, chamada “As grandes cidades e a vida do espírito”, onde o autor analisa, entre outras coisas, os impactos psicológicos da vida urbana. Segundo o sociólogo, a vida no campo é mediada por relações de proximidade e afeto, onde todos se conhecem, possuem uma vida mais estável, com relações mais profundas e contínuas, sendo mais fácil se afetar com aquilo que acontece com o outro. Já na cidade, a vida é muito mais intensa, cheia de acontecimentos novos a todo momento, muito mais sons, imagens, cheiros e pessoas. As relações passam a ser mediadas pelo caráter comercial e monetário, onde a racionalidade ganha do afeto, as relações são fugazes, superficiais e, como forma de defesa a tantos estímulos nervosos, os indivíduos adotam uma “atitude blasé” diante dos acontecimentos, deixando de se sentirem afetados pelas coisas que vivenciam na metrópole, naturalizando eventos absurdos, como pessoas em situação de rua ou exploração do trabalho infantil. Este é, de fato, um texto muito bom para pensarmos os impactos da vida na cidade nas mentes e nas relações entre as pessoas, mas ela não consegue elaborar nem a questão e nem a proposta que atravessa a vida dos indivíduos negros na cidade ou no campo, de como é vivenciar essas contradições internas e sociais. Essa é uma das principais contribuições do filme “O Menino da Moeda”, que nos possibilita, através do olhar negro e perspicaz de Izah Neiva, acessar uma narrativa preta da vida urbana em sua diversidade de papeis, que vai desde uma mulher negra, empresária, de classe média, passando por um delegado de polícia negro, até um menino negro em situação de rua ou tendo seu trabalho infantil explorado.
“O perfil físico da atriz que eu imaginava para a personagem do projeto seria o da Camila Morgado”. Um ponto interessante sobre o filme foi o processo de elaboração da personagem principal e a escolha da atriz para interpretar Vera. Izah nos contou que, ainda no primeiro tratamento do roteiro, imaginava a personagem sendo branca mas, com o passar dos anos, com o resgate de sua própria ancestralidade e identidade negra, a autora percebe como o processo de embranquecimento, que a afetou, também estava afetando a sua narrativa audiovisual, sobre uma história que havia passado não com outra pessoa, mas em sua própria vida.
PublicidadeO menino da moeda tem um nome. Não me refiro ao nome do ator, mas do próprio personagem. Ele se chama Marcos Vinícius, em referência ao menino de mesmo nome assassinado no Rio de Janeiro enquanto voltava da escola. Izah nos disse que brinca com essa questão o tempo inteiro no roteiro, por perceber que algumas pessoas sempre se referem às pessoas em situação de rua negando suas individualidades, como se elas fossem, naturalmente, parte da paisagem, nunca sendo chamadas por seus respectivos nomes, é o que acontece com a personagem Pequena, interpretada pela atriz Maria Clara que, durante a trama, nunca é chamada por seu nome, mas sempre por alcunhas que, ainda que carinhosas, reforçam esse aspecto.
Um outro momento no filme, no qual podemos perceber a complexidade dos problemas vividos por crianças negras em situação de rua, é a “atitude blasé” e racista dos agentes do Estado, que não se permitem afetar pelo desespero de Vera, que está em busca de Marcos Vinícius. O delegado, interpretado pelo ator André Ramiro, o policial, interpretado pelo ator João Cândido e a assistente administrativo do necrotério, interpretada pela atriz Ana Medeiros, explicitam como as instituições do país tem muito o que melhorar no que se refere a humanização de corpos pretos, os quais, vivos ou não, são sempre negligenciados.
Como já mencionado, são exploradas algumas teses ao longo do filme. Uma das teses é a famosa expressão “tá com pena, leva pra casa”, muito repetida, por exemplo, por apresentadores de programas policiais, quando se referem a defensores dos direitos humanos que atuam na preservação do direito de minorias e/ou infratores. É muito interessante perceber o caminho que a personagem Vera faz e nas limitações com as quais ela vai se deparando, é quase como se estivéssemos na mente de uma pessoa que está se perguntando: “mas e se eu fizesse isso, o que aconteceria?”. O filme cumpre o seu papal de nos colocar para pensar sobre o assunto, com o cuidado de não eliminar a contribuição crítica do próprio espectador, amedida em que ele não formula necessariamente uma resposta, mas aponta problemas sobre os quais, diariamente, escolhemos varrer para debaixo do tapete.
“Se você rebobinar o filme, vai ver que tem um rapaz black power, sentado, lendo um livro de Nelson Mandela. Tem pessoas que nem reparam, outras sim, mas não é estranho um garoto preto num IML? Muita gente não acha isso estranho”. Essa é uma outra tese explorada na história contada por Izah Neiva que, através de elementos mais visuais, revela uma narrativa paralela que pode escapar aos olhares menos atentos. Outro detalhe muito sutil, mas muito importante, para compreensão geral dos conceitos presentes na história, é a presença de uma Iemanjá branca, que aparece no altar do apartamento de Vera, mostrando a busca espiritual da personagem e o embranquecimento que compõe sua identidade, sobretudo a partir do lugar que ocupa, de mulher preta, pertencente a classe média, moradora do asfalto e empresária. Mas Marcos Vinícius, o menino da moeda, representando a juventude preta brasileira, que vem crescendo em seu processo de afirmação e crítica à sociedade branca e racista, carrega em seu pulso uma Iemanjá preta, produzida pela artista plástica Edi Oliveira, especialmente para o projeto!
Ainda a respeito da questão religiosa no filme, Izah Neiva consegue fazer algo muito raro no audiovisual nacional: contar a história da personagem sem transformá-la no próprio orixá. A religião afro está integrada à história de uma personagem negra sem, contudo, ser o eixo principal da obra, tal como é feito com outras religiões quando aparecem em narrativas audiovisuais. A espiritualidade aparece como uma cola entre a identificação da personagem Vera com Marcos Vinícius e como cobrança de sua própria consciência a respeito de algo que a personagem precisava amadurecer e aprimorar em sua própria personalidade.
“Eu moro no meu sapato e meu cabelo é meu telhado” é um trecho da música “Música de Calçar Absurdo”, de autoria do Núcleo de Pesquisa Orquestra de Objetos desinventados, com arranjo de Kleber Martins e interpretada pela cantora Ayana Amorim, parte da trilha sonora do filme, que pode ser entendida como algo divertido e infantil, mas quando se compreende a mensagem passada pelo filme, se mostra uma crítica mordaz e inteligente a respeito de questões sociais que negligenciamos a respeito de pessoas em situação de rua, Izah não nos deixa esquecer disso em nenhum segundo do filme, o qual nos emociona e nos impacta, cumprindo seu papel de entretenimento, sem deixar de gerar impacto social. Quando Marcos Vinícius entrega a Vera uma moeda, ele está quebrando a perpetuação de séculos de história, onde os negros passaram temer uns aos outros. O menino da moeda humanizou Izah Neiva, humanizou a Vera e a todos nós.
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