Peço ago[1] a todos os ancestrais da minha terra. Peço a benção a Iya Oba Biyi [2], Mãe Aninha, primeira matriarca e fundadora da família Afonjá. A benção a todas as mais velhas e mais velhos que partejaram o meu nascimento no Ilê Axé Opô Afonjá, meu berço ancestral.
Omo Iya la bele
Omo Iya la bele
Omo Iya jo iaô
Oniê Omo Afonjá
Awa de
Mãe Aninha, eu fiz uma carta para falar com a senhora… Na verdade eu vou contar a sua carta e a senhora vai me ouvir porque os nossos mortos não morrem. Birago Diop, um poeta africano nos diz:
“Ouço no vento.
PublicidadeO soluço do arbusto:
O sopro dos antepassados.
Nossos mortos não partiram.
Os nossos mortos não morreram.
Estão no ventre da mulher no choro do bebê.
Nossos mortos não partiram”
É considerando deste modo que eu tenho a certeza que quando falo eu sou atendida por todas as mães ancestrais que amparam esta casa com os conteúdos sagrados, valores éticos, estéticos e filosóficos.
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Creio que o mais importante neste momento é falar que eu convivo neste lugar sagrado há mais de 35 anos. Antes como pesquisadora da UFBA e mais tarde como iniciada que já alcança mais de 30 anos e ainda me emociona atravessar a porteira do Ilê Axé Opo Afonjá. Entro cerimoniosamente e confiante. Alcanço o Reino de Xangô. Para a nossa cultura o símbolo é o que simboliza. Logo vou entrar na casa do Pai desta comunidade.
Enraizada na terra sagrada eu me percebo como uma árvore que se junta a tantas outras muito mais antigas. O Afonjá é um pedaço de terra do quilombo do Cabula adquirido às suas expensas dando como pagamento um trancelim de ouro. Sei que daí em diante negras e negros foram amparados por sua força, resgatando a dignidade, o equilíbrio aqui na nova terra de de Ya.[4]
Assim eu me vejo, e me compreendo como uma pessoa bem-nascida. Eu não sou uma arvore isolada. Eu sou parte de uma densa floresta que tem início do outro lado do Atlântico e aqui se reúne como um único povo malungo.[5]. Povo de Santo. Esta é a constatação de que a cultura e a religião de origem africana no Brasil expressam uma cosmopercepção sistemática, estruturada e estruturante que dá significado e orienta vidas pretas no Afonjá.
Na condição de mulher preta, professora, historiadora, mestra e doutora com o “anel no dedo” como quis Mãe Aninha, criei com a participação de toda comunidade o Projeto Político Pedagógico Irê Ayó[6] na Escola Eugênia Anna dos Santos. Além de educar formando sujeitos solidários e coletivos vejo desdobrada a cultura africana, recriando e restabelecendo coletiva e individualmente a nossa identidade resinificada no contexto da nossa cidade que é pluricultural, multiétnica e polissêmica onde 83% da população se autodeclara negra.
Tenho estudado muito para compreender o terreiro como um lugar que por sua origem legitima ações e interconexões com a História do Brasil e a História da África, o Direito, as Ciências, a Ética imprescindível na relação comunidade e sociedade.
Tenho me esforçado para viver cada dia mergulhada no simbólico, materializado ou não. e que ocupa todo o espaço sagrado completando o sentido na religião e convivência comunitária. Esta é uma razão pela qual se faz necessário distinguir as peculiaridades dos terreiros como lugar mítico de resistência política, proteção e cuidado com o outro.
Fiquei sabendo deste episódio por e está registrado, que certo dia a senhora, Mãe Aninha, entrou em uma quitanda e encontrou uma mulher que ia saindo e que chorava muito. Indagou o motivo de choro, quando o quitandeiro respondeu: Não vendo mais fiado a esta mulher. “Ela já comprou muita coisa aqui e não paga”. Mãe Stella me contou que a Senhora, Mãe Aninha, retirou seus brincos de ouro, pôs em cima do balcão ordenando: Venda tudo que ela precisar e cobre o que ela lhe deve. Amanhã eu volto para buscar meu trôco.
Assim, eu me despeço grata pela proteção e o encanto deste lugar perfeito para fazer emergir a realização da essência mais profunda da natureza humana.
[1] Pedido de licença na língua ioruba.
[2] Nome ancestral de Mãe Aninha – Criadora do Ilê Axé Opo Afonjá.
[3] Saudação às mães ancestrais do Afonjá na língua ioruba.
[4] Deusa protetora do povo Grunci.
[5] Malungo é irmão na língua banto.
[6] Irê Ayó –Caminho de Alegria na Língua Yorubá
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