Paulo José Cunha *
Durante a ditadura militar, comunistas disputavam avidamente nas redações a página d’O Globo onde o economista Roberto Campos publicava seus artigos. Americanófilo confesso, conservador, defensor do livre mercado e adepto de regimes fortes – não à toa serviu e apoiou todos os governos militares –, Bob Fields, como o chamávamos na intimidade dos cafés nas redações, representava literalmente tudo o que combatíamos.
Então, qual a razão da avidez para ler seus artigos? “Para saber o que os adversários estão pensando” – bradavam os que se opunham ao golpe.
Igualmente, os simpatizantes dos governos verde-oliva não perdiam um artigo que saía no proscrito Voz Operária, arauto do Partido Comunista, e em publicações francamente contrárias ao regime como Opinião, Movimento e O Pasquim, entre outros. Precisavam se informar, e não apenas reforçar suas convicções. Cansei de ver no gabinete do senador e principal líder direitista Jarbas Passarinho exemplares de publicações de esquerda. De cujos articulistas recolhia argumentos para ilustrar seus discursos.
Ou seja: independentemente da inclinação ideológica, lia-se de tudo, tanto o que coincidia com os próprios pontos de vista como com o que batia com os pontos de vista dos adversários. Essa abertura à pluralidade facilitava a definição de estratégias na disputa pelos reduzidos espaços de poder. Ou mesmo – e por que não? – para a eventual aceitação de argumentos contrários e até para dar a mão à palmatória, por mais que isso fosse difícil.
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Nos dias de hoje, com as exceções de praxe, o dogmatismo ideológico vem matando sem piedade o pensamento crítico. Como bem lembrou o colunista Luiz Felipe Pondé, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, as pessoas “…raramente buscam informação e, quando o fazem, o fazem para reforçar seus próprios pressupostos e não para relativizá-los”.
PublicidadeClaro que sempre existiram jornais panfletários, de pensamento único, arautos de certa e determinada linha ideológica, defensores radicais de uma causa, de um partido ou de um movimento político/social. Mas, desde priscas eras houve publicações plurais, já maduras para acolher posições divergentes, por vezes na mesma página, um artigo se contrapondo ao outro. E os esgrimistas não precisavam se matar, nem baixar o nível. Debatia-se no plano das ideias, como deve ser.
Não raras vezes era possível ver oponentes concordando com adversários. Um troço muito antigo que atendia pelo nome de… “convivência democrática”. Isso, em plena ditadura! Acreditava-se na possibilidade de convencimento do adversário a partir de argumentos consistentes, capazes de abalar sólidas convicções.Se o leitor parar um pouquinho para pensar, vai concluir que só os doidos varridos têm ideia fixa. Portanto, mudar de opinião não é sinal de frivolidade, mas de amadurecimento. De sabedoria.
O debate existe para a relativização das divergências, busca de consensos e de convergências capazes de reduzir a rigidez das posições antagônicas, favorecendo o convívio dos contrários.
A rememoração de um passado nem tão antigo assim não é saudosismo. Serve para lembrar que, há bem pouco tempo, o Brasil viveu período de relativização dos radicalismos, de debate franco e honesto de ideias, e até de humildade no reconhecimento de erros e posições políticas. Um senador da república, feroz defensor dos governos militares desde seu nascedouro em 64, o usineiro Teotônio Vilela, reconheceu publicamente que estava errado e transformou-se num dos mais duros adversários da ditadura, ajudando a derrubá-la. O “menestrel das Alagoas” virou símbolo de resistência democrática.
Curioso é que o radicalismo irresponsável resolveu florescer e vicejar justamente agora, em plena vigência do regime democrático. Passa da hora de retomar a salutar prática do confronto das ideias. Menos palavras de ordem vazias, mais ponderação.
Parece utópico, mas é possível e até recomendável abandonar o sectarismo e acolher, se corretas, posições diversas das professadas e difundidas por líderes oniscientes. Talvez seja este o maior desafio de nosso tempo: reconhecer que o adversário, que nos ensinaram a identificar como sendo o próprio diabo, às vezes, pode estar certo. Reparando bem, pode não ser tão feio quanto se pinta. Nem tão errado quanto se supõe.
* Paulo José Cunha é professor, jornalista e escritor.
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