André Rehbein Sathler *
Estarrecidos, logo após a reincidência de Brumadinho, fomos obrigados a ouvir a manifestação do advogado da Vale de que a empresa “não enxerga razões determinantes de sua responsabilidade”. Diante de tão delirante hipostasia, só uma hiperestesia de responsabilidade – se é que executivos e representantes dessa empresa ainda sejam capazes de senti-la. Felizmente, pouco depois o advogado foi desautorizado pela direção da empresa a falar em seu nome.
A reincidência de Brumadinho se torna ainda mais terrível quando analisada pelo prisma do que a própria Vale se propõe a valorizar. À semelhança da maioria das grandes empresas nacionais e internacionais, a Vale ostenta um rol de valores corporativos – um guia principiológico que supostamente guia o comportamento de todos dentro da empresa e o da própria empresa.
Minimamente, declarações de valores revelam aquilo que as empresas gostariam que fosse a realidade e os comportamentos preferíveis. Ressalte-se que a Vale não é o primeiro caso de assimetria entre valores esposados e práticas organizacionais. A Enron, que faliu em ruidoso escândalo, tinha como valores declarados Respeito, Integridade, Comunicação e Excelência.
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Primeiro entre os pares: a vida em primeiro lugar. Diante do que já se sabe sobre Mariana e Brumadinho, fica evidente que, na verdade, deveríamos ler: ‘o lucro’ em primeiro lugar. Uma concepção selvagem e antiquada de lucro, pois o meio empresarial já foi suficientemente conscientizado sobre a temática da responsabilidade social: a importância dos stakeholders, ao invés do foco estrito nos shareholders.
Valorizar quem faz a nossa empresa soa como amarga ironia aos familiares dos funcionários mortos. A construção do centro administrativo e de um restaurante na rota imediata da barragem mostra um desrespeito total com aqueles que fazem a empresa Vale. As fotos mostram que o terreno em torno é irregular, portanto, colocar o restaurante e o centro administrativo em outro lugar certamente custaria alguns dólares a mais. Melhor fazê-los ali mesmo, então, onde o terreno era um pouco mais plano. Restam dúvidas razoáveis, Vale, se os mortos naquele restaurante estão se sentindo valorizados.
Outra ironia para estômagos fortes: cuidar do nosso planeta. Talvez aqui a assimetria entre valor e prática seja devida à uma incompreensão terminológica. Cuidar pode ser entendido no sentido em que mafiosos pedem a capangas para cuidar de algum assunto. Pois, cuidar do planeta, despejando nele, pela segunda vez em poucos anos, uma imensidão de rejeitos tóxicos, contaminados e contaminantes, só pode ser compreendido dessa forma. Cuidar do planeta promovendo sua destruição, ao seguir utilizando tecnologias antiquadas, já não utilizadas em países mais desenvolvidos, nas suas práticas de mineração e controle dos resíduos. Cuidar do planeta mantendo suas barragens como verdadeiras bombas-relógio sob populações indefesas, mesmo diante de alertas comprovados emitidos por funcionários da própria empresa, anos atrás.
Agir de forma correta é o próximo valor enunciado. Vai de encontro frontal à fala do desautorizado defensor da Vale. Agir de forma correta implica, em primeiro lugar, em assumir responsabilidade. Agir de forma correta é aceitar as multas e não buscar negociá-las ou extingui-las. Agir de forma correta é pagar as indenizações devidas e permitir que as pessoas afetadas sigam com suas vidas em condições mínimas de dignidade. Agir de forma correta é respeitar o luto de centenas de terceiros e não os afrontar com a manchete: “Vale não tem responsabilidade por rompimento”.
Seguimos: crescer e evoluir juntos. Apenas três anos separam Mariana de Brumadinho. Importante ressaltar que não estamos falando de catástrofes provocadas por terremotos, vulcões, fenômenos naturais. Estamos falando de desastres provocados pelo ser humano e, portanto, inerentemente evitáveis. Evoluímos? Só se for no sentido mórbido de que a tragédia de Brumadinho tenha muito mais vítimas fatais do que a de Mariana. Deus nos livre de continuamos a evoluir nessa perspectiva.
Finalmente, pelo menos no que tange ao último em seu rol de valores, parece que a Vale walk the talk: “fazer acontecer”. Sim, construir barragens precárias com tecnologia antiquada é fazer acontecer. Sim, pressionar por licenças mais rápidas, é fazer acontecer. Sim, valer-se de lobby para evitar normativas mais rígidas, é fazer acontecer. Assim a Vale veio até aqui, fazendo acontecer.
Como disse um poeta, não consigo me recordar qual: “O Rio é Doce, a Vale é amarga”.
* André é doutor em Filosofia.
Do mesmo autor:
> Brassíria – Um cenário sombrio do Brasil pós-eleições
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