Ricardo de João Braga *
Conta-se que no Japão feudal um samurai recebeu a missão de encontrar e matar um ladrão. Os samurais, à época, eram os executores da justiça, os legítimos detentores da violência. Pois bem, o samurai passou meses na busca de seu fugitivo ladrão e, inevitavelmente, encontrou-o. Ambos os homens lutaram brutalmente, mas, ao se ver sem saída e prestes a sucumbir sob a destreza superior do oponente, o ladrão desesperado cuspiu no rosto do samurai. A espada então pronta para o golpe final estacou, o samurai cessou o ataque e franqueou a fuga ao ladrão, que não morreu naquele dia.
Por que o samurai abaixou a espada após receber a cusparada em seu rosto? Aqui a narrativa salta para um patamar superior. De fato, se ele tivesse liquidado o agressor após a agressão desesperada, sua história hoje estaria esquecida entre tantas outras violências justas e injustas que abundam no mundo. Contudo, ao guardar a espada o guerreiro cumpriu um valioso mandamento ético. Ao receber a agressão, o samurai encheu-se de raiva pelo ladrão, e se o houvesse morto naquele momento ele teria dado vazão a um sentimento visceral e não a uma obrigação moral. Ele considerava que não tinha direito de matar o ladrão por raiva; sua missão deveria ser realizada quando ele houvesse reencontrado o equilíbrio de emoções e obrigações morais. E assim o ladrão foi temporariamente poupado.
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Mudando de história, há anos atrás eu assessorava um deputado relator de matéria altamente polêmica. Este parlamentar frequentemente via-se engolfado por um grupo de deputados e apoiadores que insuflavam sua confiança e exigiam que a matéria fosse logo colocada em votação. Eram também comuns os enfrentamentos com os opositores, e permanentes a violência e a agressividade nos debates.
Aconteceu que numa dessas ocasiões com o relator, uma reunião fechada em que o grupo dos apoiadores manifestava seu incontido ânimo e desejo de ação, um deputado mais experiente, inadvertidamente eu creio, entrou na sala. Assim, postavam-se nós, a turba, de um lado, e o deputado solitário do outro. Apoiado na força dos números, o relator inquiriu-lhe em voz alta:
– Apoia o projeto, deputado Fulano? – o inquirido, em pé a poucos passos da porta, sorriu calmamente e deu bom dia a nossa turba.
Como não viesse a resposta desejada, o relator insistiu:
– Apoia o projeto, deputado Fulano? – agora ele nos fitava e apenas moveu os lábios para sorrir de novo e tranquilamente. Não deu a resposta que o relator tentava arrancar dele.
Vendo que suas tentativas de pressionar o colega frustraram-se, o relator passou-me a espinhosa tarefa:
– Explica ao deputado Fulano do que se trata a discussão!
Naquele momento em que todos olhavam para mim esperando que eu “convencesse” o deputado, fiz o melhor que pude, sempre espremido na brevidade que as conversas com parlamentares exigem. Após minha explicação, que apenas apontou as linhas gerais da discussão, o deputado virou-se para o relator e sua turba e disse calmamente:
– Vou me aconselhar com três pessoas que conhecem bem a matéria e comunico a vocês minha posição.
Do que me lembro da história nunca houve a comunicação posterior, contudo, achei a postura daquele deputado uma lição. Ele se postou de forma educada e elegante com o grupo que claramente o constrangia. Ele foi sobranceiro, mas respeitoso conosco.
Por que conto essas duas histórias? Porque atualmente um misto de emoção e fragilidade tem dado o formato do debate público.
Qualquer polêmica desmorona rapidamente para argumentos agressivos e desrespeitosos. Boa parte dos debatedores parece sentir um profundo desespero diante da possibilidade de “não ganhar” e entram na disputa para matar ou morrer. A forma como as discussões são conduzidas as distancia da racionalidade, do respeito, e a busca de apoio e legitimidade frequentemente utiliza-se de sentimentos brutos como raiva, ódio, exclusão, frustração. As pessoas têm aberto a porta de sua existência para que as polêmicas públicas sentem-se na sala de visitas de seu espírito e de lá comandem um séquito de sentimentos frágeis e confusos. O desespero de “não ganhar”, a necessidade de “lacrar”, de “mitar”, de “detonar” o outro diz muito a respeito de nós mesmos: não estamos convictos nem confortáveis de nossas posições, o contra-argumento é uma ofensa. Revela-se uma profunda dificuldade em olhar para dentro de nós mesmos. E no fundo, tudo isso é fragilidade.
Qual a necessidade de “vencer” um debate? Vencer parece saciar uma necessidade, mas um debate não se vence. O que ocorre é uma troca bem ou malsucedida de informações e sentimentos entre pessoas. Nos casos exitosos ocorrem compreensão mútua e empatia, aproximando as pessoas. Nos fracassos, maior distanciamento e acúmulo de ressentimentos.
Não surpreende que os argumentos extremos abundem. Extremismo significa se proteger da concessão, porque a concessão exige autocrítica, olhar para dentro de si, e o que mais se faz é fugir em desespero desse encontro consigo mesmo. É no extremismo que se escondem a fragilidade, a fraqueza, a falta de confiança em si próprio.
Marshall Rosenberg, psicólogo norte-americano (1934-2015) autor da Comunicação Não-Violenta (ou Comunicação Compassiva), ajuda-nos a compreender o quadro atual do “debate” público. Para ele a comunicação tanto constrói o mundo quanto diz muito sobre nós mesmos. Segundo o autor, julgamentos morais, e a consequente decorrência de estar certo ou errado, vencer ou perder discussões, são pouco importantes. Na maioria das vezes, de fato, julgamentos atrapalham ou impedem a comunicação entre as pessoas.
Para Rosenberg, o que os seres humanos fazem ao se comunicar é apresentar sentimentos e necessidades aos outros. Sentimentos de frustração, medo, ódio, amor, alegria, compaixão. Necessidade de ser ouvida, de ter espaço, de suporte, descanso, diversão, amor. Contudo, expressamos isso muito mal, especialmente porque nossa cultura nos molda para escondermos os sentimentos, pois apresentá-los significa fraqueza. Como não conseguimos expressar nossos sentimentos e principalmente nossas necessidades, elas não são atendidas, e então agredimos o outro.
Os “debates” públicos hoje demonstram um enorme sentimento de medo, de fragilidade, de deslocamento. Parece que o mundo não tem um lugar para nos receber adequadamente. E ao contrário de dizermos ao outro o que sentimos e precisamos, em geral temos visto que as pessoas agridem o semelhante, como se ele fosse o culpado de todos os mal-estares ou como se o destruir satisfizesse nossas necessidades. Causas intrincadas, quadros sociais complexos são personalizados no inimigo que precisamos liquidar. Se olhássemos o quadro como ele realmente é, proceder-se-ia a uma revisão de nossas convicções e ao afastamento do extremismo e do confronto.
Voltando a nossas histórias do início, o samurai não precisava saciar sua emoção com a destruição do outro. Ele tinha uma missão social, que era distribuir justiça, e administrava suas emoções para que ambas as esferas da vida mantivessem sua integridade. Quanto ao deputado que me ensinou aquela lição, ele não precisava de nossa aprovação, nem de estar certo perante nós. Ele nos mostrou que estava em paz com suas convicções e escolhas.
Tanto o samurai quanto o deputado não precisaram usar os outros para saciar suas necessidades. De fato, suas posições interiores estavam bem resolvidas, e assim eles puderam dar aos outros respeito e espaço. Se desequilíbrio emocional e fragilidade geram agressão, a autoconfiança e o autoconhecimento verdadeiros transmitem respeito e permitem ao outro desenvolver-se num ambiente empático.
Marinheiros do mar de manifestações extremas e polêmicas acerbas de nosso tempo, cabe a cada um questionar se nos portamos como o samurai e o deputado da história ou se fazemos parte da turba que equivocada e desesperadamente quer arrancar do outro aquilo que só podemos encontrar em nós mesmos. A agressão é nossa fraqueza; a força está na convicção pacífica.
* Professor do mestrado profissional em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados. Economista e doutor em Ciência Política.
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