Rodrigo Roca e Luciana Pires *
Criança e abuso, negro e preconceito, fascismo e poder. Algumas palavras não podem constar da mesma frase, porque as pessoas não querem mais ler o resto da oração ou mesmo entender o seu contexto. Criam como que uma cegueira periférica e não se interessam mais em saber se é uma dura crítica ou até um novo argumento que deixe mais clara ainda a necessidade de combate a essas patologias sociais. São palavras proibidas e quando usadas em discurso devem ser precedidas de preleção ou de penitências, embora nem sempre sinceras. Não importa. Alguns vocábulos parecem açular as pessoas imediatamente e provocar-lhes salivas, tal como na conhecida experiência de Ivan Pavlov.
Imprensa e censura têm esse condão. É preciso muito cuidado para se fazer qualquer espécie de crítica ou de construção que pareça uma tentativa, mesmo que bem intencionada, de impor limites ao exercício da boa imprensa ou até de coaduná-la com a necessidade de respeito a outros direitos – também de alçada constitucional – que, ao lado da liberdade de expressão, tocam igualmente à personalidade e a seus consectários lógicos.
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Basta um ensaio nesse sentido para que, antes do fim da frase, pululem alguns gritos de Areopagítica (livro que não leram ou não entenderam) e de censura, opium das multidões.
A imprensa deve ser livre, não há dúvidas, e não há democracia que se sustente senão sobre esse pilar. E no exercício dessa liberdade, não pode encontrar anteparos à manifestação de palavras, opiniões, críticas e publicização de fatos, ainda que em defesa de bandeiras ou de signos. Mas não é disso que estou falando.
É que já não me surpreendo quando vejo nos jornais, conteúdos inteiros de expedientes processuais que os próprios jornalistas exibem e informam – com orgulho – tramitarem sob sigilo judicial. Alguns profissionais chegam a ser premiados em festividades dezembrinas por conta dessas façanhas jornalísticas.
PublicidadeAcostumei-me a assistir e até a quase admirar, aqui do cone sul das Américas, as repetidas vezes em que repórteres se vangloriam de terem obtido “com exclusividade” material acautelado em Instituições realmente comprometidas com o sigilo das informações. Antecipo que vou poupar o leitor de apelos sentimentalóides e por isso mesmo omitir os danos que esses vazamentos causam às pessoas que veem suas vidas expostas em tiras e, não raro, com incitação implícita a prejulgamentos que tiveram como único filtro o espaço que determinado jornalista teve para a sua matéria ou nota, em cada jornal.
Mas isso acontece. E quando essas notícias são passadas por homens de terno, com sorriso transverso, através de televisores, o que era só uma interpretação passa a ser um dado e algo tomado como fático e, portanto, verdadeiro.
A partir daí, aquele que foi alvo da reportagem passa a ser obrigado a discutir sua causa, não mais nos autos como lhe foi prometido, mas à vista de todos e somente no espaço reservado ao direito de resposta ou através de entrevistas que até então tinha se negado a conceder. Chamam a isso transparência e, quando acrescentam a expressão “sigilo da fonte”, tem-se uma equação macabra, porém resolvida.
É um território neutro. A ninguém mais é dado questionar ou sequer pensar sobre as circunstâncias da elaboração daquela matéria. É como se um imigrante ilegal de um país, tivesse logrado alcançar a embaixada da sua terra natal. Passa a ser intocável. As investigações são instauradas, mas, os repórteres não são obrigados a falar sobre a origem dos documentos; os interessados não têm a quem apontar e geralmente os autos acabam sendo arquivados sem solução, fomentando a estatística desses casos e estimulando novos assaques contra direitos fundamentais de inúmeras pessoas. Mas tudo isso passa despercebido desde que seja divertente e capaz de entreter o público tanto quanto as tramas das novelas.
O que é proibido perguntar, nesse contexto, é como aquele telejornal, revista ou afim conseguiu acesso – e de quem – a determinado documento, protegido de tantas formas e por tantas razões. As pessoas não pensam (ou pior, pensam, mas se calam) que para ser produzida tal reportagem escrita ou televisiva é preciso que alguém, talvez não o repórter (eu disse, talvez…), tenha praticado ou participado do crime de violação de segredo profissional (art. 154 do CP), de estelionato (art. 171 do CP) e de tantos outros, com desrespeito ainda à decisão judicial que decretou o sigilo dos autos, ao próprio Ministério Público e às partes do processo.
Mais: que esses vazamentos são praticados, decerto, mediante trocas escusas, ardis, relações de compadrio, pagas quiçá, e à base de tudo aquilo que eles mesmos tacham de degradante nos textos que elaboram sobre os investigados, num ciclo paradoxal e patético.
E que em circunstâncias outras, aquele que recebeu algo de origem criminosa seria rapidamente chamado de receptador, não de profissional, e muito menos digno de encômios ou de prêmios de final de ano.
Mas se tudo deve possuir um lado positivo, essa prática perniciosa tem servido para mostrar a ineficiência do Judiciário brasileiro de garantir o que se convencionou chamar de Segredo de Justiça e a necessidade premente de se rever, no plano legal e prático, a rotina desse instituto. Por ora, seguimos assim; alcovitando segredos devassos.
- Rodrigo Roca e Luciana Pires são advogados de Flávio Bolsonaro.
Confira a visão oposta sobre o assunto, da advogada Taís Gasparian
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