Márcio Santilli* e Mauricio Guetta**
Com a eleição de um presidente de extrema-direita em 2018, o Brasil chegou a um momento de grave risco para a democracia e para os direitos humanos, especialmente os direitos socioambientais. Com perfil totalitário e trajetória de isolamento enquanto deputado federal, Jair Bolsonaro e autoridades de órgãos de proteção socioambiental desmontaram políticas públicas construídas e aperfeiçoadas por décadas – por governos de diferentes vertentes ideológicas, constituindo-se como políticas de Estado. Nessa linha, entre 2019 e 2020, o Poder Executivo federal parece ter centrado suas ações em estabelecer retrocessos infralegais contra o meio ambiente e os povos e comunidades tradicionais, afastando o Congresso Nacional de diversas deliberações.
Entre os inúmeros exemplos que ilustram tal situação, podem ser citados: (i) o Despacho Interpretativo nº 7036900/2020, emitido pelo presidente do IBAMA, que extinguiu a Autorização de Exportação da madeira nativa, inviabilizando o controle ambiental por parte do órgão ambiental federal (objeto de Ação Civil Pública ajuizada por ISA, ABRAMPA e Greenpeace ); e (ii) o abandono do Plano de Ação para Prevenção e Combate ao Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), que resultou em danos graves e irreparáveis à floresta amazônica: o desmatamento aumentou 34 % entre 2018 e 2019 e outros 9,5% entre 2019 e 2020, alcançando 11.088 km² com o consequente descumprimento da meta climática brasileira para o ano de 2020, prevista pela Política Nacional de Mudança do Clima (objeto da Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental nº 760, ajuizada por sete partidos políticos e dez organizações da sociedade civil).
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A repercussão negativa do governo federal na área socioambiental não passou incólume pelo Congresso Nacional. Segundo a “Pesquisa de Opinião: Visão Socioambiental do Congresso Nacional”, realizada com 179 deputados e senadores, quando perguntados sobre o principal problema ambiental do Brasil na atualidade, entre os termos mais citados estão “desmatamento”, “falta”, “governo”, “fiscalização” e “Amazônia” (p. 9). Ainda conforme o estudo, ao avaliar a atuação do governo federal, “a maioria dos parlamentares considera as políticas de meio ambiente e clima do governo Bolsonaro péssimas (33,5%) ou ruins (16,8%). Os que consideram ótimas são 6,1% e os que consideram boas são 18,4%” (p. 18).
Interessante observar, ainda, que as ameaças socioambientais impostas pelo governo federal se refletem na resposta dos parlamentares ao questionamento sobre qual seria a principal função do Legislativo na área socioambiental: segundo a mencionada pesquisa, “a opção preferencial dos parlamentares recaiu sobre o papel de fiscalização do Poder Legislativo sobre o Poder Executivo, como meio para evitar retrocessos na política ambiental” (p. 31). Daí ter o “Relatório Parlametria: proposições legislativas ambientais no Congresso Nacional – 2019/2020” apontado considerável aumento no número de Projetos de Decreto Legislativo apresentados no Congresso Nacional em 2019 e 2020, voltados a sustar atos emanados pelo governo federal, bem como a ampliação do ajuizamento de ações sobre temas socioambientais por partidos políticos perante o Supremo Tribunal Federal.
Nos últimos dois anos, o Congresso acolheu e melhorou propostas enviadas pelo governo e também pressionou e aprovou medidas importantes, como a criação do auxílio emergencial para os mais afetados pela pandemia, que garantiram, além da proteção social, dividendos políticos para o próprio governo. Além disso, o Parlamento igualmente exerceu o seu poder moderador diante de iniciativas extremadas, equivocadas e inconstitucionais pretendidas pelo governo. Nesse sentido, além de suprir parte das gravíssimas omissões do governo no combate à pandemia, o Legislativo rejeitou ou deixou caducar todas as Medidas Provisórias com efeitos negativos à agenda socioambiental apreciadas em 2019 e 2020 (“Parlametria”, p. 3).
PublicidadeIgualmente, no plano geral, proposições legislativas do governo atentatórias contra os direitos socioambientais não foram votadas nos plenários da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, como é o caso do Projeto de Lei nº 191/2020, que pretende abrir as Terras Indígenas a atividades de significativo impacto, como garimpo, mineração, hidrelétricas, petróleo e agropecuária. Por fim, em momento de louvável convergência entre as bancadas ambientalista e ruralista, aprovou-se em 2020 a Lei nº 14.119/2021, que estabelece a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais, bem como derrubou-se boa parte dos vetos presidenciais.
A postura do Congresso, de maior ponderação e cautela ao longo de 2019 e 2020, contrariou, diversas vezes, o presidente e alguns dos seus ministros. O presidente, que raramente reconhece legitimidade em posições que não sejam as suas, não mediu esforços para estimular divisões e influenciar as eleições dos presidentes da Câmara e do Senado. Notadamente na Câmara, Bolsonaro favoreceu a vitória de Arthur Lira, como representante das forças políticas agrupadas no chamado “Centrão”. Ato contínuo, o presidente recebeu os novos dirigentes do Congresso, entregando-lhes uma lista com trinta e cinco projetos considerados prioritários.
Entre eles, constam propostas com consequências nefastas para a agenda socioambiental brasileira, as quais, se aprovadas, comprometeriam ainda mais a imagem do país no exterior. A primeira, o PL nº 191/2020, já citado, pretende expurgar os direitos territoriais dos povos indígenas abrindo suas terras tradicionais – as mais preservadas do país – a todo tipo de empreendimento de impacto. A segunda, o PL nº 2.633/2020 na Câmara e o PL nº 510/2021 no Senado, consiste na legalização do roubo de terras públicas, inclusive os mais recentes, em benefício de grandes possuidores de terra e em franco estímulo à ilegalidade ambiental. A terceira, o PL nº 3.729/2004 na Câmara e o PLS nº 186/2018 no Senado, podem desconstituir o licenciamento ambiental, um dos principais e mais consolidados instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente, responsável compatibilizar valores constitucionais como, de um lado, a livre iniciativa e o desenvolvimento econômico e, de outro, a proteção ambiental e a garantia dos direitos das pessoas impactadas por empreendimentos. Além dessas, há outras ameaças legislativas sobre diversos temas da agenda socioambiental, como Unidades de Conservação, Código Florestal, agrotóxicos, liberação da caça e outras, o que exige atenção redobrada por parte da sociedade brasileira para garantir a proteção de seu direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
No momento em que finalizamos o presente texto, em 06.04.2021, o Brasil constatou (mais) um novo recorde de mortes por dia desde o início da pandemia, com 4.211 brasileiros/as levados/as a óbito. Não há leitos de UTI em boa parte do país, faltam elementos hospitalares básicos e há atrasos injustificáveis na compra de vacinas. O que se constata é um total descontrole da pandemia, com graves consequências também para a economia nacional. Evidentemente, em contexto desolador como tal, incumbe ao Congresso Nacional empenhar todos os seus esforços em medidas que permitam ao Brasil sair do caos pandêmico. Também por esse motivo é que se mostra absolutamente impertinente a apreciação de propostas complexas, polêmicas e danosas, como as apontadas acima.
Bolsonaro espera que, nos próximos dois anos, o Congresso se transforme numa corrente de transmissão dos propósitos do governo, abandonando o seu papel republicano de poder moderador e imputando graves retrocessos aos direitos socioambientais. O Brasil e o mundo esperam do Legislativo que foque suas energias no enfrentamento da pandemia e na garantia dos direitos da população brasileira.
*Sócio fundador do Instituto Socioambiental – ISA
*Consultor jurídico do Instituto Socioambiental – ISA
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