Edemilson Paraná*
Entre primaveras e manifestações, lutas parlamentares e polêmicas apaixonadas, o ano de 2014 começou quente para o nosso pequeno Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que, em alguns lugares do Brasil, como o Rio de Janeiro, por exemplo, começa a ganhar fôlego como uma alternativa real de poder. Como produto direto de uma conjuntura intensa e confusa, um conjunto de contradições, problemas, possibilidades e oportunidades se abre de forma avassaladora para nós. O partido cresce em tamanho e relevância, sobretudo nas juventudes. Mas para onde irá e em qual coordenada se instalará de fato o PSOL na cartografia política brasileira de nosso tempo?
As jornadas de junho, realizadas com nosso apoio e das quais parte de significativa de nossa militância foi protagonista, não deixaram de produzir uma verdadeira hecatombe em nossa já movimentada vida partidária. É que se governos, entidades, sindicatos e movimentos sociais, cada um a sua maneira, viram-se fortemente questionados em seus potenciais reais de mudança social, não foi diferente para nós que, naquilo que há de positivo ou negativo, lutamos para nos consolidar, desde a recente fundação em 2005, como um partido político – instituição estruturalmente desgastada face ao “espírito do tempo”.
Em nossa cozinha, há, também por isso, uma discussão intensa sobre o futuro da legenda.
De um lado, setores mais ligados a suas “raízes”, defendem um “petismo das origens”, agarrado ao programa-estratégia conhecido como “democrático-popular”. Aqui, a tese fundamental é de que, uma vez abandonada pelo Partido dos Trabalhadores, seu principal defensor e impulsionador, que teria capitulado diante das elites dominantes nacionais e internacionais, a plataforma possível face à realidade política brasileira deve ser empunhada e levada adiante pela fatia da esquerda brasileira, desde 2005 no PSOL, que não aceitou tal rebaixamento político-programático em nome da governabilidade conservadora e que tem, portanto, a necessária autoridade política e moral para cumprir a referida tarefa. Não surpreende que, no tocante às alianças políticas, ao modo de gestão do partido e ao programa que deve ser defendido, esses setores mimetizem, de modo por vezes nostálgico, a vivência petista de outrora.
De outro, agrupamentos, sobretudo os mais enraizados nas juventudes, que alguns têm denominado de pós-petistas, acreditam na necessidade de um programa, estratégia e formas de militância radicalmente renovados, que superem de vez este ciclo histórico, iniciado a partir da década de 80, que, em sua leitura, dá mostras claras de desgaste político profundo e irreversível. A partir dessa interpretação, apostam em novos instrumentos de luta e movimentos sociais, conectados com esse cenário de superação estrutural do projeto petista, como elemento de reconstrução da esquerda brasileira. Essas diferenças, aqui simplificadas, encontram eco em distintas apostas e leituras teóricas, concepções de modelos organizativos e lógica de funcionamento do partido e suas direções que remontam debates históricos das esquerdas.
Se tais diferenças que, aos olhos da maioria da população parecem insignificantes mas que desenham rumos importantes da vida interna do partido, conviveram, não sem conflito, até aqui, por meio de uma política interna de acordos mínimos, definida de tempos em tempos em congressos, a partir de junho de 2013 a coisas começam a mudar. A nova situação política, marcada por um alto grau de tensionamento social em vários espaços da sociedade brasileira, tem tornado esse equilíbrio interno cada vez mais frágil. Momentos de crise, com seus problemas e oportunidades, sabemos, desenham uma necessidade mais premente de apostas rápidas, robustas e eficazes, conectadas e capazes de responder com clareza aos desafios de seu tempo. Em muitos lugares, como no Distrito Federal, lideranças jovens, que em sua maioria compartilham dessa leitura, foram alçadas aos cargos de direção do partido.
PublicidadeÉ possível ler a partir dessa lente, como relativa a esse impasse, por exemplo, a crise instaurada no diretório do partido em São Paulo no que se refere à candidatura a governador de Vladimir Safatle e o seu agora nome alternativo, Gilberto Maringoni. Ambos defendem e representam mais ou menos, com um sério risco que todas as simplificações esquemáticas carregam, as diferentes leituras e teses acima apresentadas. O filósofo e professor da USP Vladimir Safatle, recém-filiado, não por acaso, tem sido defendido pela base do partido, sobretudo as juventudes, como o nome mais conectado com a conjuntura pós-junho. Gilberto Maringoni, jornalista e professor da UFABC, ligado ao grupo que tem apertada maioria no diretório nacional, não coaduna da tese de superação estrutural do ciclo político petista e é protagonista, por isso, de um diálogo mais próximo com a “esquerda” do PT (que caminha a passos largos para se transformar no bloco monolítico que não queremos ver o PSOL se transformar).
É elucidativo – no que há de potente e limitado – que nosso partido ainda discuta o espólio do processo petista de organização da esquerda brasileira. Aí reside a crítica, inclusive, de muitos daqueles que seguem apegados a um PT que desmorona em seus valores e propostas. A crise, dirá Antonio Gramsci, “consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”. É, pois, nesse interregno que a política brasileira se encontra. E é na luta para superar o velho com a produção o novo que o PSOL hora se mobiliza.
Se, no entanto, em uma conjuntura de reconfiguração da luta social e do cenário político, estamos relativamente próximos de superar uma etapa defensiva, marcada por uma legenda que surge em 2005 basicamente à fórceps, para acolher os desterrados do projeto petista que acabou devorando seus próprios filhos, a pergunta que inicia esse artigo volta a impor-se com uma força avassaladora. Para onde vamos?
Em sua adolescência política, o PSOL busca, não sem dor, como é comum nesta fase, encontrar seu lugar no mundo. Pacificar-se com suas origens no intuito de superá-las em nome de uma existência política verdadeiramente autônoma é o desafio que agora se coloca diante de nós. A disputa interna no PSOL, ora lida, não sem razão, de modo caricatural pelo conjunto da sociedade é, pois, parte da própria disputa político-social, externa, tomada em seu sentido amplo. É assim, afinal, que caminha a vida de um partido democrático e plural, que carrega a palavra liberdade em seu nome.
Mas que esquerda? Que PSOL?
A hora, no entanto, é de nos movermos em frente. Nossos desafios conjunturais são parte integrante dos desafios históricos da esquerda mundial no século XXI e não podem ser lidos separadamente, de modo esquemático ou etapista. É hora de superarmos o dirigismo e o burocratismo que, de certo modo, caracteriza os setores da velha esquerda (nos governos ou, fora deles, nos partidos radicais) e a estrutura partidária como um todo, em todo o espectro político.
A esquerda pós-muro de Berlim, que tropeça e vacila em seu caminhar, sobretudo no que se refere à força de seu projeto histórico de superação do capitalismo, precisa vencer a separação, que remete à 1968, entre esquerda tradicional – ligada às lutas econômicas por justiça social, e a esquerda das identidades e da diferença – conectada à critica cultural, dos costumes e das opressões identitárias. Apenas ancorada em um crítica (anti)sistêmica, a partir de uma leitura das totalidades, em que as opressões e violências são tomadas em seu sentido multicausal, é que podemos caminhar conjuntamente e unitariamente na construção de uma outra sociedade, sem invisibilizar nenhum de seus construtores e construtoras no interior dessas mudanças.
Além de um diagnóstico preciso e atual sobre a estrutura cruel de funcionamento do modo de produção capitalista em tempos de hiper-desenvolvimento tecnológico e dominância financeira, precisamos apontar caminhos (mesmo que através de novas formas de resistência) para a superação da crise civilizacional (porque social, cultural, política, econômica e ambiental) em que nos encontramos no início do século XXI. A dominação de um ser humano por outro não pode ser lida separadamente de um diagnóstico profundo e autocrítico do significado que tem, na origem, a dominação da própria natureza por ele mesmo. Se não for verde, nem colorida e festiva, a esquerda do século XXI jamais encontrará o tom de vermelho que lhe parece faltar.
No que se refere aos direitos individuais, não nos cabe negar, seja qual for a justificativa, sua defesa. O sacrifício das liberdades democráticas e individuais em nome de um coletivismo autoritário e burocrático, produziu atrocidades que não podemos ousar defender ou justificar. Longe de reforçar o liberalismo econômico e político que compõe a farsa de nosso tempo, as liberdades sexual, de credo, costume, modos de vida e tantas outras, podem e devem caminhar juntas na defesa de uma sociedade igualitária para com suas maiorias sociais e minorias políticas. Longe de jogar o indivíduo na lixo da história, temos de defender que apenas em uma sociedade justa e igual no que se refere à organização de seu trabalho e produção social, somente com a garantia de liberdades coletivas que viabilizem e garantam de fato (e não apenas formalmente) a existência de uma pluralidade dos modos de vida, é que o indivíduo poderá realizar todo seu potencial enquanto tal. Somos, como defendia Rosa Luxemburgo, “por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”.
Devemos, por isso, ocupar nosso espaço no mapa político brasileiro como uma esquerda libertária e anticapitalista, que construa o poder popular por meio do impulsionamento de lutas sociais, bandeiras e reivindicações que dialoguem diretamente com a vidas cotidianas e concretas das pessoas. Um esquerda, em resumo, que não vacile e que, nas palavras de Vladimir Safatle, “não tenha medo de dizer seu nome”. E para isso, além de renovar nosso discurso e prática política sem abrir mão de nosso lado claro, é preciso imaginação, novas ideias e propostas claras. Temos de ser uma esquerda que mais do que propostas defenda e propague valores, e mais do que valores, seja capaz de apresentar propostas.
No interior do PSOL, precisamos reforçar nosso caráter de “frente ampla”. A hora é de ampliarmos ainda mais nossa pluralidade, servindo como um acolhedor guarda-chuva, democrático e aberto, a receber organizações, grupos, movimentos e agremiações que subscrevem nossas ideias e com os quais construímos a luta social. O cinturão apertado da unidade partidária incondicional, hierarquizada por um centralismo burocrático e aparelhista, não dá mais conta de sustentar as pressões transformadoras de nosso tempo. Não conseguiremos, de outra forma, reconstruir a esquerda brasileira em tempos fragmentação política profunda. O medo de perder o controle de sua direção não pode nos paralisar diante da possibilidade de fazer crescer e ampliar esse necessário instrumento de mudança.
O PSOL não é e não pode ser, portanto, um fim em si. Seu objetivo não é acumular mandatos parlamentares, deslocar oligarquias dissidentes ou avançar de etapa em etapa rumo à direção da maquina burocrática do Estado. Disputá-la é importante, é verdade, mas apenas como parte da disputa da própria sociedade em sentido amplo. Para não cometermos os erros da história recente, essa trajetória não pode se apartar da luta pela construção de um orgânico e enraizado processo de mobilização social. Chegar ao poder, de modos questionáveis e submissos, para só depois tentar mudar as regras do jogo não é uma tática que deve estar no nosso cardápio de opções.
Tudo somado, com todas as suas dificuldades, as disputas do PSOL compõem o quadro de um partido que ainda não jogou a toalha, que não se vendeu e que tem amor pelas ideias que defende. Sabemos o quanto isso é raro e especial em nosso tempo. Estamos inseridos nas principais lutas políticas nas redes e ruas, e nossos parlamentares estão entre os mais coerentes e combativos do país, utilizando seus mandatos como palanque para essas lutas, pautas e bandeiras. Nos Estados, temos avançado na defesa de ideias e práticas diferentes do mainstream político, e no plano nacional, a candidatura de Randolfe Rodrigues à Presidência será a única a defender o passe-livre no transporte público, os direitos LGBT e das mulheres, a legalização da maconha, a reforma agrária e a agricultura camponesa, o fim dos privilégios a banqueiros e ao capital financeiro no Brasil, a revisão da ilegítima e nunca aditada dívida pública brasileira, mais gastos sociais com saúde e educação pública, gratuita e de qualidade para todos, uma reforma política profunda e o fim de doações privadas de campanha, etc. O Brasil precisa de uma oposição de esquerda relevante e apenas nós podemos cumprir esse papel na atual conjuntura.
No contexto brasileiro atual, os desdobramentos disso em um programa político que combata sem tergiversar os fundamentalismos religiosos e sociais e, na denúncia de nosso modelo econômico desigual e concentrador, defenda um programa de mudanças sociais reais e profundas, que caminhem na direção da igualdade e dignidade, é um imperativo. Para isso, precisamos de um discurso de justiça social que fale para as maiorias sociais, disputando o debate político, sem abrir mão de suas ideias. Isso é possível e se manifesta em cada grito pela universalização de uma educação de qualidade, por sustentabilidade e respeito ao meio ambiente, por uma saúde que não seja mercadoria, por um transporte que funcione e sirva a todos, entre tantos outros que ouvimos em junho passado. O cenário poucas vezes nos foi tão favorável como agora. É hora de se reinventar para agir. É hora de mudar.
*Edemilson Paraná, 25 anos, é vice-presidente do PSOL-DF, jornalista e mestrando em sociologia pela Universidade de Brasília
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