Antonio Tovo* e Cássio Macedo*
O ano de 2019 teve diversas polêmicas no campo da Justiça criminal. Uma delas está no pacote de mudanças legislativas, apresentado pelo Ministro da Justiça, Sérgio Moro, chamado de “Projeto Anticrime”, propondo a alteração de 14 Leis federais.
Em nossa visão, as premissas do Projeto já nascem anacrônicas: apoiam-se no aumento de penas e endurecimento de regimes de execução, na expectativa de que a ameaça abstrata intimide as pessoas que cogitam cometer crimes. A fórmula é conhecida: espera-se que mudanças da legislação magicamente produzam alterações da realidade de nossa segurança pública. Sobre esse ponto, partilhamos da concepção do professor Miguel Reale Jr.: antecipar a ida de pessoas para a prisão e retardar sua saída não vai resolver absolutamente nada.
Não podemos desmerecer todas as ideias constantes do projeto, há iniciativas positivas. Há pontos interessantes, como: 1) aperfeiçoamento do tipo penal para melhor enquadrar o caixa dois eleitoral; e 2) a criação da figura do whistleblower. Com relação ao primeiro ponto, entendemos que trará maior segurança jurídica para os casos que envolverem recursos não contabilizados de campanha.
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Quanto à criação do whistleblower, entendemos que avançar na delimitação jurídica dessa figura seria importante para a qualificação das investigações. Contudo, o texto proposto é flexível demais no que tange à proteção da identidade de quem está realizando de boa-fé uma denúncia contra o governo¹ ou contra entes privados. Ainda, está distante demais das recomendações internacionais para legislação de proteção e incentivo ao denunciante. Em suma, trata-se mais de uma ideia interessante, mas cujo marco legal deve ser revisado profundamente.
Sobre os pontos negativos do pacote “anticrime”, teríamos diversos a destacar, mas nos limitaremos a um em especial: as modificações da legítima defesa, em especial para agentes de Segurança Pública, que vem sendo chamada de excludente de ilicitude (as excludentes de ilicitude já existem em nosso Direito Penal como gênero).
Em síntese, a teoria do delito está sendo atacada por uma proposta irrazoável de expansão da legítima defesa. Em nosso sistema jurídico, o crime é uma conduta típica (que corresponde à previsão da norma penal), ilícita/antijurídica (que contraria o ordenamento) e culpável (o agente tem condições de compreender o caráter reprovável da conduta). Em apertada síntese, esse é o conceito de crime. O Direito Penal brasileiro também prevê causas de exclusão da antijuridicidade ou de ilicitude, que, caso configuradas, afastam a incidência do crime no caso concreto.
O art. 23 do Código Penal traz três hipóteses de exclusão de ilicitude: “Não há crime quando o agente pratica o fato: i) em estado de necessidade, ii) em legítima defesa, iii) em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
Para ilustrar o ponto, toma-se o tipo penal do artigo 121 que descreve a conduta “matar alguém”. Caso um cidadão mate alguém em legítima defesa, ele terá formalmente cometido o crime (a conduta é típica), mas o Direito considerará que a sua conduta não foi contra o ordenamento, isto é, não foi ilícita, pois ele agiu de modo a repelir injusta agressão, atual ou iminente. Aqui reside nosso ponto de controvérsia com o pacote: o Código Penal já possui previsão que exclui a responsabilidade penal daquele que agir em legítima defesa de si mesmo ou de terceiros.
Não bastasse a inadequação de legislar penalmente para blindar uma categoria específica, a abertura interpretativa de conceitos vagos como “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” é incompatível com o padrão de técnica jurídica que deve pautar as normas penais. O inconveniente de tal reforma é que seja compreendida por alguns agentes como um permissivo para aumentar as mortes em abordagens policiais. As forças de Segurança Pública brasileiras já possuem um nível de letalidade em operações que extrapola os padrões internacionais.
Além das impropriedades técnicas, as reformas ignoram alguns dados conjunturais: (i) embora a população conviva com uma permanente sensação de insegurança e de impunidade, em nosso país prende-se muito e prende-se mal. Nosso índice de resolução de crimes violentos é pífio (aponta-se que apenas entre 5% e 8% dos homicídios são solucionados no país). Nossa taxa de encarceramento é superior à maioria dos países do mundo e a superlotação dos presídios é a regra; (ii) atualmente, o país tem a 3ª maior população carcerária do mundo (812 mil presos, de acordo com o CNJ), atrás apenas de Estados Unidos e China, e a que mais cresce proporcionalmente; (iii) no Brasil, as prisões não reduzem a criminalidade: menos de 1/5 dos presos trabalha e só um em cada oito estuda. Nosso sistema prisional não permite que os presos aprendam um ofício e/ou estudem, tornando quase regra que os egressos insiram-se no ciclo de reincidência; e (iv) o custo econômico e social de manter presídios que são depósitos humanos comandados por facções é alto demais, e esse é um fator inexorável de incremento de criminalidade.
Não é demais lembrar que desde 2017 testemunhamos seis terríveis massacres em presídios brasileiros, causados por disputas entre facções criminosas, nos quais foram vitimadas um total de 250 pessoas – a título comparativo: o massacre do Carandiru, em 1992, deixou 111 mortos.
No chamado Pacote Anticrime, não se fala em aprimoramento da inteligência policial, nem em investimento em estruturas de investigação, nem em iniciativas de Polícia Comunitária ou Cidadã. Também não se debate a reestruturação de um sistema penitenciário falido, que só retroalimenta o crime. Não se propõem melhores condições de trabalho para as forças policiais, nem amparo às famílias de policiais vitimados. Não se discute a descriminalização da posse de drogas em determinadas quantidades. A proposta é mais uma aposta no Direito Penal simbólico: aumentam-se as penas, recrudescem-se os regimes, autoriza-se que os órgãos de Estado sejam mais letais.
O Professor da Universidade de São Paulo, Conrado Hübner Mendes, diz que nossa atividade legislativa por vezes se assemelha a uma fábrica de balas de prata, ou seja, como se a edição de uma nova lei instantaneamente acabasse (como a mitológica munição) com o problema a qual a norma se endereçava. O Projeto Anticrime está recheado de balas de prata. Investir na expansão da punição como forma de reduzir a violência é crônica de uma morte anunciada.
¹ A necessidade de proteção do whistleblower ficou bastante evidenciada na polêmica em que se envolveu o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, na recente crise em que se apura seu incentivo à investigação de adversários políticos na Ucrânia.
Antonio Tovo – Doutor em Direito Penal pela USP. Advogado criminalista no Souto Correa Advogados.
Cássio Macedo – Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Advogado criminalista no Souto Correa Advogados.
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