O projeto de formação da Comissão da Verdade aprovado no dia 21 de setembro tem, entre outros objetivos oficiais, o de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.
Em algumas comissões de outros países, o conceito de reconciliação nacional teve sempre um caráter demagógico e conformista, e foi incluído para amaciar a reação dos agentes das ditaduras, que proibiam qualquer investigação sobre sua participação em genocídio, assassinato, estupro, sequestro e tortura.
Na reconciliação, as vítimas e seus entes queridos abdicariam de qualquer propósito punitivo, em troca de que seus antigos opressores reconhecessem seus próprios crimes. Se fosse possível que o ex-torturado faça cafuné no tenente que monitorava os eletrodos (que hoje, se estiver vivo, deve ser um maduro coronel da reserva), isso exigiria ao menos que o ex-algoz reconhecesse suas culpas. Caso contrário, não há reconciliação, mas apenas submissão.
No Brasil, isso não acontece. Em 17 de outubro de 2004, quando foram difundidas fotos sobre a tortura e assassinato de Vladimir Herzog, os militares publicaram uma comunicação onde se gabavam do fato, e ameaçavam todos os que ousassem criticar aquela atrocidade. Isso obrigou José Viegas, o primeiro ministro da defesa de Lula, a renunciar (vide). Em diversas oportunidades, o bando castrense bradou ruidosamente contra o presidente Lula, que se apressou a suavizar os atritos. Entre os casos mais arrepiantes, está o elogio que um general fez ao ex-vicepresidente Alencar, por apoiar a criação de uma bomba nuclear brasileira (!), que, segundo os militares, era uma necessidade ignorada pelo presidente Lula.
Poder-se-ia argumentar isto: tratar o exército como uma entidade única que deve pagar agora as culpas de seus antigos membros é um antropomorfismo. Estaria sendo culpada uma entidade abstrata (a instituição “exército”) pelos crimes de seus anteriores elementos. Essa observação seria justa. Porém, acontece que os novos quadros militares repetiram, muitas vezes, que eles são o mesmo exército de sempre, calando as vozes “reconciliatórias” que diziam: “Os novos militares não são os mesmos de há 30 anos”. Eles desiludiam logo os comedidos bajuladores. Disseram com estas ou outras palavras: “Não, senhores, somos os mesmos; o exército permanente, único, indivisível, está acima dos governos, dos políticos, de todos”.
Os “reconciliadores” não entendem que a reconciliação é uma relação entre duas partes. Os civis ou militares perseguidos pela ditadura vão se reconciliar com quem?
Todo ódio é ruim, mas, pedir o oposto, amar o inimigo, como propugnava Mateus (5.43-48), é exigir muito. Afinal, se amo meu inimigo, ele deixa de ser inimigo e se torna amigo. Ou seja, a comissão transformará inimigos em amigos?
PublicidadeNa Argentina, se podem encontrar exemplos mais claros que no Brasil e no Chile. Lá houve centenas de famílias exterminadas em bloco (10, 15 e mais membros), das quais se salvaram alguns que fugiram levando crianças. Pretende-se que essas crianças, agora com mais de 30 anos, procurem os que torturaram, estupraram e mataram seus pais, tios, irmãos, primos e avós, e os abracem e os beijem entre lágrimas, dizendo “eu vos amo”. Ao mesmo tempo, os paparicados algozes dizem: “Garotos, nós matamos teus parentes porque eram uns sujos marxistas e o faríamos de novo, e desta vez não deixaríamos você vivo”. Gostaria de encontrar alguém que seja verdadeiramente capaz dessa atitude de reconciliação.
Aliás, “reconciliação” significa acabar com um conflito irracional e odioso, mas isso não se aplica a uma legítima oposição entre vítimas e carrascos. Se defendermos radicalmente a teoria da conciliação, em todos os casos, deveríamos exigir que as vítimas de Gaddafi, dos ditadores de Síria, Iêmen, Sudão, etc., se abstenham de pedir seu julgamento, e aprendam a amar os que, por diversas razões (psicopatia, fanatismo, delírio, etc.) encheram suas vidas de horrores. Não seria melhor propugnar o fechamento do Tribunal Penal Internacional?
A reconciliação é válida entre partes que estão confrontadas de maneira irracional, como na África do Sul. Lá, o apartheid foi movido pelo setor mais fascista da comunidade branca, e arrastrou, de maneira às vezes involuntária, outros brancos que não sabiam como fugir de seu ambiente. Inversamente, foi natural que os negros, ante tão brutal discriminação, desenvolvessem um sentimento de repúdio e desconfiança pelos brancos.
Eu senti isso em minha própria pele quando fiz, depois de muito tempo de conhecê-lo, meu primeiro contato realmente amistoso com Mtshana Ncube, filho de um chefe tribal de Azania. Ele me disse: “Carlos, nós temos afinidade para sermos grandes amigos, mas eu preciso de meses de observação até adquirir confiança num branco”. Ele não pensava que todo branco fosse inimigo, nem que todo negro fosse vítima, pois alguns negros colaboraram com a polícia e o exército dos brancos. Era, portanto, um conflito artificial, que merecia ser resolvido.
Mesmo que os racistas fossem maioria entre os brancos, uma etnofobia recíproca é humanamente nociva. Portanto, a comissão de reconciliação da África do Sul teve o propósito (não sabemos até que ponto bem sucedido) de eliminar um confronto de ódio. A meta era reconciliar brancos com negros em geral, mas não reconciliar as vítimas com seus algozes, fossem negros ou brancos. Aliás, aos que citam Mateus, como fez Martin Luther King, devem ser coerentes: o cristianismo exige arrependimento, e os algozes que se arrependeram são menos de 1% em qualquer uma das mais de 30 comissões de verdade instaladas mundo afora. Na Argentina não se conheceu um único caso de algoz arrependido de seus crimes. A maioria se arrependeu de ter deixado testemunhas vivas.
A idéia de “reconciliação nacional” é um construto ideológico e fetichista. Ele supõe a unidade nacional, que só poderia existir num mundo emancipado. De fato, qual é a unidade entre um coronel e os camponeses que seus jagunços matam? O conceito de unidade nacional (Nationale Einheit) é uma proposta do romantismo alemão, que constituiu a base do nazismo, com o resultado conhecido. A crença num nacionalismo de esquerda não passa de uma confusão conceitual. Quando todos forem irmãos, como na 9ª Sinfonia de Beethoven, a humanidade terá conseguido superar os antagonismos, mas também as diferenças nacionais, e a unidade será espontânea. E, se essa emancipação não acontece nunca, a única unidade possível será a dos opressores.
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