Tem sido doloroso e triste ver, todo dia, compadres de longa data pararem de se falar, de trocar mensagens de WhatsApp, de pelo menos se cumprimentar ao se cruzar na rua, só por estar em polos opostos do espectro ideológico. Tem sido de rasgar o coração parentes queridos repentinamente afastados, se olhando de lado, desconfiados, sem dar chance a um abraço, um aceno, um aperto de mão.
Tem sido difícil suportar o que a intolerância política anda destruindo, destroçando, apartando, colocando em campos opostos e raivosos. Ligações afetivas de anos, de décadas, muitas delas até de sangue, entre irmãos, entre pais e filhos, entre primos, entre netos. Tudo virando pó misturado com bile e pólvora.
É preciso parar esse rasga-tripas
O Brasil enfrenta uma tragédia maior do que um simples embate político. Vê, estarrecido, laços afetivos se desfazerem e o sumo do ódio afastar – para sempre? – companheiros até outro dia amados, parentes até outro dia festejando em volta da mesa, entre risos e vivas.
De todos os males enfrentados pelo país, cujas vísceras vêm sendo reviradas pelo avesso pelos lava-jatos da justiça, talvez o pior e o de mais trágicas consequências seja o distanciamento entre pessoas queridas por diferenças ideológicas. Sim, é necessário lutar até às últimas consequências contra a praga da corrupção. Sim, é preciso por na cadeia ladrões do dinheiro público, do PT ao PSDB, do PP ao MDB. As investigações devem continuar e ir até o fundo do tumor, a fim de sarjá-lo e de dentro dele ser retirada a podridão a fim de garantir a cura do mal que ameaça o corpo inteiro.
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Mas é fundamental que os homens públicos sérios (e os há, acredite) assumam suas responsabilidades e iniciem, mesmo que timidamente, um processo de retomada da cordialidade política, de civilidade diante da divergência, de ponderação diante do radicalismo. O rasga-tripas que vimos presenciando de parte a parte não nos levará a bom porto. Alguém tem de baixar essa bola, recolocá-la no meio do campo. As partes precisam sentar no gramado e definir regras civilizadas. Senão esse jogo vai terminar em carnificina.
Homem cordial ou homo barbarus?
Se não me engano foi Santo Agostinho que escreveu: se insistirmos na lei mosaica do olho por olho e dente por dente terminaremos cegos e desdentados. O homem cordial proposto (erroneamente, a meu ver) por Sérgio Buarque de Holanda para definir o brasileiro, vem se revelando cada vez em sua natureza mais primitiva, e se transformando num homo barbarus, com o tacape em lugar do afago, a bala de chumbo no lugar da bala de menta.
A cegueira ideológica é uma doença grave. Permite ao cego o cometimento das maiores atrocidades em nome de uma causa. Tais atrocidades até o orgulham porque já não vê nelas crime, mas, sim, a defesa de um ideal sublime pelo qual vale a pena lutar, matar e morrer.
A ferocidade das manifestações políticas, polarizadas ao extremo, vem numa escalada cada vez mais acirrada. Líderes cuja responsabilidade maior é o bem do país, em vez de água jogam cada vez mais gasolina na fogueira.
A direita, ancorada num candidato que não esconde sua intolerância, seu racismo, sua homofobia, sua misoginia e seu desapreço por qualquer sinal de direitos humanos, como é prova seu prazer em elogiar a tortura e os torturadores, encastelou-se num discurso roído pelo ódio e pela prepotência.
A esquerda, por sua vez, perdeu a linha e o apreço pela mais singela racionalidade, ao insistir na construção da narrativa psicodélica segundo a qual seu líder, preso por corrupção em duas instâncias, confirmadas pela mais alta corte do país, seria o primeiro caso em toda a história da humanidade, de um preso político em plena vigência de um regime democrático. E portanto vale tudo para deixa-lo outra vez livre.
Não há espaço para bons modos: é a vez do homo barbarus
Diariamente, ouvem-se incitações às armas e à morte. Algumas:
Do senador Roberto Requião (MDB-PR): “Convençam-se: não há mais espaço para a conversa e os bons modos”.
Da deputada Benedita da Silva (PT-RJ): “Sem derramamento de sangue não haverá redenção”.
Da senadora Gleisi Hoffmann (PR), presidente do PT: “Para prender o Lula, vai ter que prender muita gente, mas, mais do que isso, vai ter que matar gente”.
Do deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ), sobre a ditadura: “O erro foi torturar os presos políticos, e não matar (…) Se ela (a ditadura) tivesse matado mais gente, teria sido melhor”.
Ainda de Bolsonaro, sobre o massacre do Carandiru: “A PM deveria ter matado mais de mil presos, e não só 111”. Sobre o país: “Só vai mudar com guerra civil, matando uns 30 mil”.
Vai desculpando aí, Sérgio Buarque, mas brasileiro cordial é o cacete. Há muito tempo a elegância do mestre-sala de uma saudosa Terra Brasilis foi trocada pela truculência neandertal do homo barbarus.
Do mesmo autor:
<< “Fake news”: qualquer coisa é melhor do que diabo de nada
<< Levanta do berço esplêndido, Brasil, que o bicho tá pegando!
Tem sido doloroso e triste ver, todo dia, compadres de longa data pararem de se falar, de trocar mensagens de whatsupp, de pelo menos se cumprimentar ao se cruzar na rua, só por estar em polos opostos do espectro ideológico. Tem sido de rasgar o coração parentes queridos repentinamente afastados, se olhando de lado, desconfiados, sem dar chance a um abraço, um aceno, um aperto de mão. Tem sido difícil suportar o que a intolerância política anda destruindo, destroçando, apartando, colocando em campos opostos e raivosos. Ligações afetivas de anos, de décadas, muitas delas até de sangue, entre irmãos, entre pais e filhos, entre primos, entre netos. Tudo virando pó misturado com bile e pólvora. É preciso parar esse rasga-tripas O Brasil enfrenta uma tragédia maior do que um simples embate político. Vê, estarrecido, laços afetivos se desfazerem e o sumo do ódio afastar – para sempre? – companheiros até outro dia amados, parentes até outro dia festejando em volta da mesa, entre risos e vivas. De todos os males enfrentados pelo país, cujas vísceras vêm sendo reviradas pelo avesso pelos lava-jatos da justiça, talvez o pior e o de mais trágicas consequências seja o distanciamento entre pessoas queridas por diferenças ideológicas. Sim, é necessário lutar até às últimas consequências contra a praga da corrupção. Sim, é preciso por na cadeia ladrões do dinheiro público, do PT ao PSDB, do PP ao MDB. As investigações devem continuar e ir até o fundo do tumor, a fim de sarjá-lo e de dentro dele ser retirada a podridão a fim de garantir a cura do mal que ameaça o corpo inteiro. Mas é fundamental que os homens públicos sérios (e os há, acredite) assumam suas responsabilidades e iniciem, mesmo que timidamente, um processo de retomada da cordialidade política, de civilidade diante da divergência, de ponderação diante do radicalismo. O rasga-tripas que vimos presenciando de parte a parte não nos levará a bom porto. Alguém tem de baixar essa bola, recolocá-la no meio do campo. As partes precisam sentar no gramado e definir regras civilizadas. Senão esse jogo vai terminar em carnificina. Homem cordial ou homo barbarus? Se não me engano foi Santo Agostinho que escreveu: se insistirmos na lei mosaica do olho por olho e dente por dente terminaremos cegos e desdentados. O homem cordial proposto (erroneamente, a meu ver) por Sérgio Buarque de Holanda para definir o brasileiro, vem se revelando cada vez em sua natureza mais primitiva, e se transformando num homo barbarus, com o tacape em lugar do afago, a bala de chumbo no lugar da bala de menta. A cegueira ideológica é uma doença grave. Permite ao cego o cometimento das maiores atrocidades em nome de uma causa. Tais atrocidades até o orgulham porque já não vê nelas crime, mas, sim, a defesa de um ideal sublime pelo qual vale a pena lutar, matar e morrer. A ferocidade das manifestações políticas, polarizadas ao extremo, vem numa escalada cada vez mais acirrada. Líderes cuja responsabilidade maior é o bem do país, em vez de água jogam cada vez mais gasolina na fogueira. A direita, ancorada num candidato que não esconde sua intolerância, seu racismo, sua homofobia, sua misoginia e seu desapreço por qualquer sinal de direitos humanos, como é prova seu prazer em elogiar a tortura e os torturadores, encastelou-se num discurso roído pelo ódio e pela prepotência. A esquerda, por sua vez, perdeu a linha e o apreço pela mais singela racionalidade, ao insistir na construção da narrativa psicodélica segundo a qual seu líder, preso por corrupção em duas instâncias, confirmadas pela mais alta corte do país, seria o primeiro caso em toda a história da humanidade, de um preso político em plena vigência de um regime democrático. E portanto vale tudo para deixa-lo outra vez livre. Não há espaço para bons modos: é a vez do homo barbarus Diariamente, ouvem-se incitações às armas e à morte. Algumas: Do senador Roberto Requião (MDB-MT): “Convençam-se: não há mais espaço para a conversa e os bons modos”. Da deputada Benedita da Silva (PT-RJ): “Sem derramamento de sangue não haverá redenção”. Da senadora Gleisi Hofman (PR), presidente do PT: “Para prender o Lula, vai ter que prender muita gente, mas, mais do que isso, vai ter que matar gente”. Do deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ), sobre a ditadura: “O erro foi torturar os presos políticos, e não matar (…) Se ela (a ditadura) tivesse matado mais gente, teria sido melhor”. Ainda de Bolsonaro, sobre o massacre do Carandiru: “A PM deveria ter matado mais de mil presos, e não só 111”. Sobre o país: “Só vai mudar com guerra civil, matando uns 30 mil”. Vai desculpando aí, Sérgio Buarque, mas brasileiro cordial é o cacete. Há muito tempo a elegância do mestre-sala de uma saudosa Terra Brasilis foi trocada pela truculência neandertal do homo barbarus.
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