Como em um filme de Hollywood, esperou-se até a última hora, com tensão crescente entre os espectadores, para aparecer a “salvação”. Então, embora sem os clarins anunciando a entrada em cena da cavalaria – afinal, os tempos são outros -, o mundo respirou aliviado, na noite de 31 de julho de 2011, com o anúncio, pelo Presidente Obama, do acordo entre republicanos e democratas para a elevação do teto do endividamento dos EUA. Afinal, mais um Happy End?
Antes de mais nada, devemos ter em conta que o acordo não pôs fim ao duelo; apenas o interrompeu. A economia dos EUA, mesmo após o acerto, continua seguindo rumo à insolvência, embora sem uma data tão precisa como até então. Da mesma maneira, e também sem uma data tão precisa como ocorria com o tesouro dos EUA, é certo que a economia mundial também segue rumo à insolvência. Assim caminha a humanidade.
A situação de alta tensão vivida em todo o mundo, até o anúncio presidencial na noite de domingo (1) e a aprovação pelo Senado na terça-feira (2), fez lembrar o filme clássico de 1952, chamado High Noon, que significa “Meio dia em ponto”, e foi traduzido, no Brasil, como Matar ou morrer. O filme, premiadíssimo, conta, em tempo real e com tensão crescente, a história de um xerife recém aposentado, vivido por Gary Cooper, que se vê ante o dilema de seguir seu antigo plano de mudar-se da cidade, junto com sua jovem esposa (Grace Kelly), ou enfrentar, sozinho, uma quadrilha cujo chefe chegaria à cidade no trem das 12h, meio dia. O propósito declarado do bandido é vingar-se do xerife, responsável por sua condenação. Ciente da inevitabilidade do duelo, e de que seguir seu velho plano apenas adiaria a data do inevitável confronto, o xerife decide ficar e enfrentar a quadrilha. O filme está disponível na internet.
A perspectiva de insolvência do tesouro dos EUA, com data marcada, criou grande tensão em todo o mundo e levou a um resultado inescapável, embora muitos prefiram não dizê-lo claramente: o dólar perdeu a sua credibilidade, mais uma vez. Se isso será, ou não, traduzido em rebaixamento do conceito atribuído aos títulos dos EUA pelas notórias agências de classificação de risco, é outra questão; aliás, questão menor.
Com mais essa perda de credibilidade, o dólar deixará de ser o porto seguro das finanças internacionais? Os analistas são quase unânimes na resposta: por falta de alternativa, não! Portanto, essa moeda continuará a ser o refúgio do capital financeiro.
Em português claro: atualmente, não há porto seguro. Tudo que é sólido se desmancha no ar. Se substituirmos “porto” por “aeroporto”, lembrando que, hoje, viaja-se muito mais de avião do que de navio, teremos uma noção mais clara, embora aterrorizante, da situação: estamos no ar, em pleno voo, e não há aeroporto seguro. Fazer o quê?
Dizia Bernard Shaw que todo problema complexo tem uma solução que é rápida, simples, e equivocada! A frase cabe bem às tendências atuais, cuja necessária e urgente reorientação é de grande complexidade.
PublicidadeInicialmente, devemos lembrar que é muito curiosa a capacidade do dólar de perder a credibilidade mais de uma vez! Isso se deve, exatamente, à inexistência, hoje, de alternativa.
Uma outra perda de confiabilidade ocorreu no final anos 1960. O Tesouro dos EUA ficou sem condições de cumprir seus compromissos, e já não era a primeira vez que a insolvência ocorria. A “solução” veio em 1971: o então presidente Nixon foi à TV e anunciou ao mundo que o Tesouro não mais cumpriria sua obrigação, para com os bancos centrais dos outros países, de trocar dólares-papel por ouro, à quantidade combinada; apenas o faria em quantidades menores, a serem determinadas pelo mercado. Sem alternativas, os países tiveram que se conformar em manter suas reservas em papel denominado dólar, mesmo cientes de que o valor “derreteria”, relativamente ao ouro, como de fato derreteu. A instabilidade que se seguiu, porém, foi menor do que se esperava.
Sobre o acordo de 31/07/2011, diversos analistas se manifestaram. Paul Krugman, o conhecido prêmio Nobel de Economia, por exemplo, foi direto: “(Com o acerto) muitos comentaristas dirão que o desastre foi evitado. Eles estarão errados.” Em sua análise, Krugman fazia considerações sobre o ano corrente e sobre a próxima década. Podemos pensar nesse mesmo prazo, e um pouco mais adiante.
Desde sua criação, em 1917, o teto da dívida dos EUA já foi aumentado mais de cem vezes. A sua frequente elevação faz lembrar o pleonasmo da pergunta que circulou no Brasil, quando reiteradas vezes aqui se discutia um teto sobre isso ou aquilo: “Trata-se de um teto máximo, ou não?” Pois é, estabelecer tetos sem corrigir os processos que fazem subir o valor a ser limitado deve fazer-nos lembrar que, acima do teto, existem o telhado, a cumeeira, a chaminé… e podem existir, ainda, diversos andares, cada qual com o seu teto, claro!
Importa registrar que as elevações do limite têm sido cada vez mais frequentes, e os valores do incremento também. Nos últimos dez anos, o aumento foi de 140%, até alcançar os US$ 14 trilhões vigentes até 31/07/2011. Caso fosse possível continuar no mesmo ritmo, o teto, e a dívida, alcançariam em 2022 cerca de US$ 34 trilhões e, onze anos mais tarde, US$ 82 trilhões. De tão elevados, fica claro que esses são números inimagináveis, e irreais!
Para a moeda manter ou recuperar alguma credibilidade, o PIB dos EUA deveria crescer de maneira comparável à sua dívida, ou ainda mais rapidamente. Será que dá?
Vejamos. O acordo prevê alguma redução do déficit; as guerras do Iraque e Afeganistão poderão acabar, também contribuindo para reduzi-lo, mas as despesas com saúde e aposentadoria dificilmente cairão, de forma permanente. Pode-se, eventualmente elevar a arrecadação, mas não muito, dada a atual perspectiva de baixo crescimento do próprio PIB, a ser agravada pelo corte de gastos previsto na negociação. Se as melhores expectativas ocorrerem, o ritmo de aumento da dívida pode cair, mas a tendência de crescimento exponencial deve persistir. Aliás, precisa persistir, para que o sistema financeiro tenha um mínimo de estabilidade, mas esse é outro assunto.
Dívidas crescem quando se gasta mais do que se ganha. Desse fato óbvio decorrem as recomendações de corte nos gastos para equilibrar o orçamento. Outro fato óbvio é que dívidas são saques contra a renda futura, como aliás estamos fazendo, nós humanos, há séculos. Temos vivido, tanto os EUA quanto o resto do mundo, com base em pelo menos dois pressupostos completamente falsos: primeiro, a crença em que a economia crescerá sempre e, segundo, a idéia de que o planeta é ilimitado. Aliás, há fortes recomendações, de diversos analistas, de que a “verdadeira” solução do problema da dívida é o crescimento do PIB. Trata-se de uma visão absolutamente míope!
No mundo de hoje, os analistas que assim pensam assemelham-se a um pediatra que, talvez tendo comprado o diploma, acompanha a saúde de um bebê analisando, apenas, a evolução do seu peso, e que acha que quanto maior o peso, melhor. Grosso modo, o mesmo se dá com analistas, e governantes, focados exclusivamente no crescimento do PIB.
Há muitos séculos, o “crescimento econômico” tem ocorrido mediante a destruição da base natural em que se apoia: perda de solos, de água, de ar respirável, de florestas, de temperaturas suportáveis, de capacidade de a biosfera reciclar os resíduos gerados, perda de recursos renováveis e não renováveis, etc. Todas as indicações são de que estamos consumindo esses recursos naturais, absolutamente indispensáveis, insubstituíveis e finitos, além da capacidade de regeneração do planeta. E não temos outro para onde ir, ou de onde trazer água, por exemplo!
Para o futuro, com mais e mais gente habitando um planeta finito, querendo consumir mais e mais, empresas querendo produzir mais e mais, e governos querendo que mais e mais coisas sejam produzidas, as perspectivas não são boas. Estamos, literalmente, consumindo o futuro! Esses são fatos também óbvios, ainda que muitos analistas prefiram não reconhecer a verdade, ou prefiram crer que um salvador, de nome “novas tecnologias”, virá em nosso socorro! Negar a evidência é fato que também se passa com a “credibilidade” do dólar.
Noutras palavras, consumimos mais do que a natureza produz. Já ultrapassamos, há muito, o “teto” do que o planeta pode oferecer! Mutatis mutantis, a mesma situação do Tesouro dos EUA. Em termos de consumo antecipado dos “serviços ambientais”, tais como água, peixes, fertilidade do solo, abelhas para polinizar as plantas, ar limpo, madeira, petróleo, etc, estimativas conservadoras sugerem que vivemos da nossa “renda ambiental” até o mês de setembro; daí em diante, há saque contra o futuro, da mesma forma que o assalariado cujo salário acaba antes do fim do mês. Mantidas as tendências, dentro de trinta ou quarenta anos nossa “renda ambiental” será suficiente para levar-nos apenas até abril. Se hoje o nosso déficit já é de 25% (três meses em doze), fica fácil concluir que as consequências, da manutenção do mesmo rumo, serão semelhantes às que têm os passageiros de um avião, em pleno voo, para o qual não há aeroporto! Para se comparar, o déficit do tesouro dos EUA, que já criou tantos problemas e é claramente insustentável, é de “apenas” 10% do PIB….
Continuar com a ilusão de que o crescimento do PIB, ou as “novas tecnologias”, virão nos salvar, é enterrar a cabeça na areia para não ver a aproximação do problema. Promover essa ilusão, como fazem muitos governantes, com o apoio de economistas, empresários, trabalhadores, burocratas e outros, é atitude que, no futuro, talvez venha a ser criminalizada!
Qualquer “solução” – lembremo-nos da frase do Bernard Shaw – deve, necessariamente, incluir o reconhecimento dos limites da Terra e o fim da cultura do consumismo, entre muitas outras providências. Eleitores devem mudar suas escolhas, e governantes devem mudar seu entendimento da realidade. Não se trata, pois, apenas de “educar” a população; também os governantes carecem de mais e melhor educação, e também de outras qualidades!
Fácil? Certamente que não; mas, há alternativa?
O dilema que vivemos vai gerar uma tensão crescente, e muito maior que a da semana anterior ao 31/07/2011; haverá também mais tensão, e mortes, que no filme Matar ou morrer.
O Mahatma Ghandi deve ser lembrado mais uma vez, embora as condições em que se encontra seu país, a Índia, apesar de todos os elogios sobre o seu “rápido crescimento” recente, não devam ser tomadas como exemplo. A vitória aparentemente impossível, que ele obteve sobre a potência colonial é que deve servir de lição; como poderemos vencer as forças que nos conduzem à insolvência? Como poderemos vencer o aspecto “colonizador” da humanidade, sobre a natureza e, assim, construir um novo caminhar para a humanidade, sem deixar “pegadas” como hoje?
Vale recordar, ainda, outras frases ditas por ele; por exemplo: “A raiva e a intolerância são inimigas gêmeas da compreensão”. Disse ele, também, reconhecer que o homem tem tendência natural para consumir, e que um dos problemas do Ocidente era não conhecer limites ao consumo … (novamente, a questão dos limites…)
Outra frase dele é também lapidar. Indagado: “Senhor Ghandi, o que o senhor pensa da civilização do Ocidente?”, ele respondeu: “Seria uma boa idéia…”
Essa a dimensão do desafio que enfrentamos, e o tempo disponível para a tarefa se esvai, rapidamente.
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