Hoje é dia de muito barulho! Em um quadro de mínima normalidade, não deveria ser. O julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula no Supremo Tribunal Federal revela o quanto ainda precisamos construir instituições que protejam e fortaleçam os ideais da democracia e da República. De lado a lado, raros são os que tentam preservar o que é fundante e essencial. Nossos núcleos de produção ideológica bipolar mandam às favas essa excentricidade pouco pragmática, essa esquisitice de pensar o país a partir de valores e princípios.
A expressão que a esquerda empresta à narrativa é clara e contundente. Há a acusação direta do beneficiamento indevido de um campo da política nacional que estaria imune às penas da lei. Não existe uma análise fática a respeito da propriedade das acusações e evidências em seu contexto mais amplo, o da sangria do Estado nacional. O contorno visível da argumentação toma do discurso democrático um de seus pilares, a igualdade perante o ordenamento jurídico, mas esquece o princípio republicano do zelo pela coisa comum, da causa pública. Lembrar e esquecer do que convém, eis a prática.
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Há ainda a assunção de uma premissa vinculante de que somente as urnas podem decidir, que desconhece parte da vontade popular expressa no contrato social como formadora original do nosso estado de direito. O povo não concede ao Estado autonomia plena, pois tem a prerrogativa de decidir seu destino pela via eleitoral.
Segundo a tese não integralmente declarada, no entanto, encerra-se aí a participação da população. Novas formas de democracia participativa, previstas na Constituição, e que incidam diretamente na produção de legislação, perdem automaticamente sua legitimidade. A Lei da Ficha Limpa, oferecida ao Congresso por quase um milhão e meio de brasileiros, aprovada por representantes eleitos e sancionada pelo ex-presidente, é um mero entrave a essas pretensões de poder. Aí reside o talvez único consenso reinante entre os próceres da nossa polarização: essa Ficha Limpa é muito chata!
E já que falamos do outro lado do espectro político, a ‘miopia‘ por lá também campeia. Na contramão do próprio discurso público, movimentos de defesa do caráter republicano do Estado, que se empenharam fortemente para destituir o PT do poder central, aportam apoio – nem sempre constrangido – ao governo que o substituiu e sobre o qual pairam denúncias de corrupção tão ou mais graves. Lembrar e esquecer do que convém, eis a prática.
Essa gente muito comprometida com a ética e os bons costumes – ironias à parte, mas que seguem – abre a porta para o flerte irresponsável do status quo com o moralismo arbitrário. De alguns anos para cá, as Forças Armadas passaram a frequentar parte dos gritos nas manifestações de rua e nas redes sociais. O objetivo é que promovam uma intervenção na vida nacional para ‘defender’ a democracia da ação deletéria dos inimigos vermelhos. Bem-vindos aos anos 60! E se alguns militares, mesmo que poucos, começam a ensaiar uma fala há tempos esquecida, é sinal de que já percebem apoio de alguns setores para uma nova aventura antidemocrática.
Quase tão ruim é que o canto da sereia começa a contaminar o próprio governo. Ávido para não deixar de sê-lo sob escolta policial e temendo enfrentar a concorrência de Bolsonaros, começa a expedir seus balões de ensaio para covardemente tentar manipular o sentimento de medo e desesperança da população brasileira, apontando a saída desastrosa da total ruptura institucional.
Esse teatro de horrores deixa qualquer um perplexo e a pensar em como deixamos essas pessoas nos representarem. A indignação cabe perfeitamente em cada um de nós, como vítimas, mas também autores dessa farsa.
Recobrando a serenidade solicitada pela ministra Carmem Lúcia, espero que a concessão do habeas corpus do ex-presidente seja julgada pelo STF como a de qualquer outro cidadão brasileiro, que é o que ele é, como determinam os preceitos constitucionais que fundamentam a legislação aplicável.
Que todos sejam julgados de forma isonômica, segundo os mesmos critérios e objetivamente de acordo com as circunstâncias, não importa o quão histrionicamente se comportem seus seguidores. É isso que garante, de fato, a manutenção e o fortalecimento da república e da democracia. O resto é projeto de poder travestido de conversa mole.
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