Há vinte e dois anos, quando comecei a juntar os primeiros cacos, eu tinha muito a dizer pro casal que tomava café na minha frente. Para eles, e pro balconista também.
Havia uma necessidade, havia o lugar-comum e o grito sufocado. Ou aquilo que os esotéricos chamam de “voz”. Vinha de longe, represada. Urgia. Guardadas a proporções de tempo e lugar, acredito que Luciano passou pela mesma experiência no século II d.C, quando trocou Samósata pela Grécia. A voz era o seu veículo, que, aliás, ecoa até hoje, livre de alfândegas, sem embargos nem taxas de importação. Luciano viajou muito. Talvez sua decisão mais acertada foi ter zoado com a tradição “clássica” da antiguidade. Deu uma banana pras epopéias e pras tragédias e, junto com Plutarco e Macróbio, tornou-se um dos maiores satiristas de todos os tempos. Vagou pela Gália, ganhou a vida como advogado e orador. Fez biscates em Siracusa e apaixonou-se por uma etrusca ciumenta cujo nome era Magali, tiveram um filho que era o cão, Menipo. Luciano que saiu de Samósata, onde hoje é a Síria, ganhou o mundo dos mortos, pintou, bordou e tripudiou do império e do modo de vida romano, falou o que tinha de falar pro casal que namorava na mesa ao lado, e acabou como despachante do Egito. Uma coisa é certa. Quando a voz urge, acaba sobrando pros casaizinhos da mesa ao lado. Sempre acreditei que, independentemente da mensagem, a arte – antes de qualquer coisa – significava, em primeiro lugar essa voz e a necessidade de falar, e depois subversão,o deboche e atrito e, por último, deslocamento.
Certa vez perguntaram a Barthes se a maneira pela qual ele interpretava as entrelinhas não era – per se – uma subversão no mais alto grau. E ele deu uma resposta devastadora. Acredito que não dá para atravessar uma rua sem levar isso em consideração.
Vejam só: “ Seria muito pretensioso da minha parte pensar que sou um subversivo. Mas diria que, etimologicamente, sim, tento subverter. Quer dizer,tento vir por debaixo de um conformismo, de uma forma de pensar que existe e deslocá-la um pouco. Não se trata de revolucionar, mas de trapacear um pouco. Aligeirá-las. Torná-las mais móveis. Fazer ouvir uma dúvida. E portanto, de abalar sempre o pretenso natural, a coisa instalada”.
Luciano de Samósata e Roland Barthes sabiam tirar uma onda da cara dos otários. “Aligeiravam” as coisas de acordo com suas conveniências. Eu recomendo Diálogos dos Mortos, de Luciano. E Mitologias, de Barthes. Se o autor de Mitologias e o autor de Diálogos dos Mortos trapaceavam sem pudores, por que eu não posso singelamente cometer umas mentiras para dizer a verdade (e vice-versa)?
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Pois bem, eis a grande questão. Hoje eu não tenho nada a dizer pro casal que se beija na minha frente. Nem mentiras, nem verdades. Perdi a voz. Eles devem ter vinte e poucos anos, usam camisas xadrezes, barba, tênis All Star esgarçados e, no intervalo entre um beijo e outro, se distraem com o notebuque customizado. Nada do que eu disser a eles irá interessá-los. Posso plantar bananeira, comer ranho e atear fogo em Roma. Nem eu, nem qualquer outro escritor que passe de duzentos e quarenta caracteres, tem o poder de dizer qualquer coisa que interesse ao casal de barbudinhos que se beija logo na minha frente. Só existe, penso eu, um livro capaz de subverter a modorra, de gerar desconfiança e fazer “ouvir uma dúvida”. Ou seja, provocar atritos e deslocamentos e, em última análise, produzir arte.
O mais assustador, porém, é que – seguindo o preceito de toda obra de arte … – as mensagens desse livro não primam exatamente pela tolerância e nem são muito conciliadoras, ao contrário: o conteúdo é confuso, repulsivo, ameaçador, beligerante e nitidamente anti-barbudinhos apaixonados. Tem mais: parece que há 1300 anos a bíblia foi pensada para a tecnologia de nossos dias. A maior parte dos seus versículos conta menos de 240 caracteres. Mark Zuckerberg é uma espécie de profeta Forrest Gump, e todos nós que temos uma conta no facebook estamos – inopinadamente – reescrevendo o livro sagrado. Não vai demorar muito para chegarmos ao apocalipse. E, enquanto os anjos do juízo final não assopram suas trombetas, vou deixar vocês com um pouquinho de Coríntios, 6:17: “Não sejais desencaminhados. Nem fornicadores, nem homens mantidos para propósitos desnaturais, nem homens que se deitem com homens, nem ladrões, nem gananciosos, nem beberrões, nem injuriadores herdarão o reino de Deus”.
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Um livro que contém a palavra de Deus, seguramente tem o dedo do capeta, por isso faz tanto sucesso, eu acho.
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Neste ano da graça de 2011 d.C, segundo estimativas da PM, a parada gay reuniu 3 milhões de pessoas e os neo-evangélicos arrastaram multidão semelhante – sem contar os enrustidos e os infiltrados, de ambos os lados. Se nos últimos dez anos, o gado aparentemente era pacífico e estava sob controle, hoje, a coisa mudou. O botão do start nunca deu tanta sopa. A meu ver, Gilberto Braga e Silas Malafaia são duas faces da mesma moeda, e oferecem a milhões de seguidores receitas de ódio e hostilidade recíprocas: basta ao crente escolher o canal de televisão.
Duas coisas vos digo; 1. Prefiro o Ratinho. 2. O confronto entre o gado de Malafaia e o gado de Gilberto Braga é questão de tempo. Pouco tempo.
Os exércitos estão formados. Não dou 10 anos para o chegarmos ao final da picada, quando, por um descuido qualquer, as forças do obscurantismo e do arco-íris serão deslocadas como jamais foram na história, e aí, bem, aí eu não vou dizer mais nada, ou seja, minha impotência será refletida no destino de quem, hoje, me ignora porque eu falo demais. Nesse dia, observarei de camarote o último beijo depois do cafezinho. Não vai passar de 240 caracteres, porém a agonia perdurará por algumas semanas. Até o crente mais renitente tombar no colo do último barbudinho de all star.
Desde já, proponho alguns brindes: à Luciano, que saiu de Samósata para ganhar o mundo dos mortos, à Barthes, ao apocalipse e à literatura. Viva!
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