Babilônia, a vingança da rua O antropólogo norte-americano James Holston escreveu um livro – A Cidade Modernista – uma crítica de Brasília e sua utopia – lançado pela Companhia das Letras, em 1993. Você pode não concordar com suas ideias (arrasa Brasília) mas admito que seus argumentos são bem embasados. Um trecho do livro fala do chamado conjunto Babilônia, as fascinantes comerciais da 205 e 206 Norte, as únicas com ligação subterrânea em todo o Plano Piloto. Houve uma tentativa de simplesmente abolir a rua e deslocar a atividade social para as laterais e fundos da comercial. O que aconteceu? A rua vingou-se e por anos e anos ali foi um verdadeiro deserto humano. Mas o cenário tende a mudar. O local agora é palco de intervenções artísticas, cenário de documentários, tem um teatro, atelier de artes, petshops… Aos poucos a comercial mais estranha do Plano Piloto começa a ter vida nova. Mas que a rua se vingou, vingou.
Balão da Dona Sarah Ou pior: ex-Balão da Dona Sarah, ou ex-Balão do Aeroporto. Os carros passaram por cima. Antes davam a volta. Em Brasília, infelizmente, carros são mais importantes que jardins, árvores e flores. Têm prioridade absoluta: vias são duplicadas para que mais carros caibam nas avenidas. E muitas das novas vias que estão sendo construídas já nascem obsoletas: em vez de trilhos, asfalto. Em vez de eletricidade, combustíveis fósseis. Brasília vive, sim, sob a ditadura do automóvel. Há bastante tempo. E o Balão da Dona Sarah? Deram o balão nela.
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Bê-á-Bá de Brasília (O) – Dicionário de coisas e palavras da capital. Thesaurus Editora, 2011. Tipo um irmão gêmeo deste livro, mas com muito mais verbetes, totalizando 884. Escrito pelo jornalista e servidor público Marcelo Torres, baiano, em Brasília desde 2002, primo do escritor e imortal Antônio Torres. O Bê-a-Bá de Brasília, de 96 páginas, retrata, entre muitos outros temas, o linguajar típico dos moradores de Brasília, num estilo leve e muito bem-humorado. Recomendo.
Bernardo Guimarães Romancista e poeta, autor de A escrava Isaura (1825-1884). Foi juiz em Catalão, Goiás, e conheceu a nossa região. O poema abaixo, publicado no livro Canto da solidão, de 1852, é profético: “Tempo virá em que nessa valada / Onde flutua a coma da floresta, / Linda cidade surja, branquejando / Como um bando de garças na planície; / E em lugar desse brando rumorejo / Aí murmurará a voz de um povo”.
Bernardo Sayão Certa vez, numa palestra na UnB, falando sobre a história de Brasília, citei o nome de Bernardo Sayão. Um aluno perguntou: “Quem foi Bernardo Sayão?” Respondi: “Você está gozando com a minha cara!” Não estava. O primeiro herói de Brasília. Era um engenheiro agrônomo que gostava de construir estradas. E pontes. Entre pessoas, principalmente. Inquieto, idealista, realizador. Antiburocrata por natureza. Homem de ação. Foi uma mistura de pioneiro com candango, daí sua enorme popularidade. Construiu a primeira pista de pouso de Brasília, perto da antiga Rodoferroviária. E dizia-se na época que as máquinas ainda estavam finalizando a obra enquanto o avião de JK e comitiva sobrevoava o local. Pura lenda. Possivelmente, desentendimentos com Israel Pinheiro, um homem rigoroso, metódico, fizeram com que JK desse a Bernardo Sayão a missão de construir a então chamada Transbrasiliana, unindo Belém a Brasília, rodovia que hoje leva seu nome. Em 1959 Sayão foi vítima de uma árvore que caiu sobre sua tenda. Quando a notícia chegou a Brasília, pela primeira vez, em dois anos de construção frenética, a cidade parou. Panos pretos foram colocados nos parachoques dos caminhões e o comércio fechou. Na noite anterior, emergencialmente, abriram uma estrada no meio do cerrado até o Campo da Esperança para receber seu primeiro e ilustre morto.
Bete não é o apelido da Elizabeth. É o nome de uma brincadeira muito comum em Brasília entre os anos 1960 e 80 (seriam esses os anos dourados de Brasília?). Joga-se bete, chamado também de taco, com dois paus (cabos de vassoura), uma bola (as de tênis são ótimas) e duas latas. Infelizmente cada vez menos crianças jogam bete, seja por falta de espaço, ocupado pelos carros, ou porque preferem joguinhos eletrônicos. Hoje em dia, quando você pergunta a uma criança: “Já jogou bete?”. Ela responde: “Eu não. Eu gosto da Bete”.
PublicidadeBicicleta Letra e música de Eduardo Rangel, do álbum Pirata de Mim, produção independente, de 1998: Agora / Eu sonhei com você / Foi em preto e branco / Tinha um pouco de mim quando criança / Eu andava de bicicleta pelas ruas de Brasília / E a água batia nas nossas pernas // Você na garupa / Pedia cuidado / E eu corria mais, como quem / Nem sabe o que é medo / Agora eu conheço o medo / Ficar grande é chato demais.
Bico da Torre Poema de Luis Turiba, do livro Cadê, de 1989, musicado por Renato Matos e gravado por Zelia Duncan, Célia Porto e pelo próprio Renato Matos: A sombra do bico da torre / na terra faz o ponteiro / que marca o momento preciso / da gente se amar (se amarrar) / São flocos de nuvens que pairam / no céu de Brasília /dão na vista/ textura arquitetura obra de artista / São blocos caiados de branco / banhados de chuva e de luz. / Felicidade nessa cidade / de afeto é o que conduz / Me induzo a ficar a pensar / que sou o céu / E a sombra do bico da torre / é a antena / que marca o momento apenas.
Billy Blanco Não Vou Pra Brasília. Eu não sou índio nem nada / Não tenho orelha furada / Nem uso argola / Pendurada no nariz / Não uso tanga de pena / E a minha pele é morena / Do sol da praia onde nasci / E me criei feliz / Não vou, não vou pra Brasília / Nem eu nem minha família /Mesmo que seja / Pra ficar cheio da grana / A vida não se compara / Mesmo difícil, tão cara / Eu caio duro / Mas fico em Copacabana. // Dizem que a música, composta em 1957, chegou a ter sua veiculação proibida na Rádio Nacional. Além de ser contra a transferência da nova capital, alegou-se na época que era discriminatória em relação aos indígenas. Não encontrei nenhum documento que atestasse que a música tenha sido censurada.
Bola de cristal O que vejo na minha? Engarrafamentos gigantescos e milhares de ciclistas, felizes, pelas vias paralelas. Vejo Taguatinga, Samambaia e Ceilândia formando Taguasamamlândia. Vejo enormes dutos trazendo água da Barragem do Descoberto e de Corumbá IV para não deixar secar o Lago Paranoá. Vejo homens, mulheres, idosos, jovens e crianças plantando árvores nativas nas beiras de todos os riachos do Distrito Federal. Vejo nascentes cercadas, arborizadas e protegidas. Vejo a Unesco suspendendo, por vinte anos, o título do qual Brasília tanto se orgulhava mas pouco fez para honrar. Vejo a Câmara Legislativa com metade de seus integrantes, orçamento bem definido e público, ligada num sistema on-line de prestação de contas de suas atividades e seus gastos. Vejo Brasília finalmente orgulhosa de seus representantes (ô esperança…). Vejo um cidadão orientando o vizinho que lava sua calçada com esguichos de água em vez de usar o vassourão. Vejo parques ecológicos delimitados, cheios de gente, sem lixo e com os equipamentos funcionando. Vejo vias fechadas para automóveis particulares em determinados horários. Vejo gente deixando o carro em casa por isso. Vejo a coleta seletiva ser praticada voluntariamente. Vejo os índices de violência chegarem a níveis de Suécia. Policiais cidadãos. Vejo hospitais e escolas funcionando regularmente, com profissionais valorizados. Vejo o planejamento urbano ser feito sem intervenções políticas. Vejo crescer na cidade um certo sentimento nativista, de orgulho de aqui morar e viver, cobrando do poder um tratamento mais respeitoso para com Brasília. Vejo as cidades-satélites mais arborizadas e com mais áreas de lazer. Vejo o Estádio Nacional de Brasília ser desmontado, cuidadosamente, peça por peça. E ser transformado em escolas públicas, que têm os desenhos mais criativos do mundo. As cadeiras seriam adaptadas para as salas de aula. O gramado, em pequenos campos de futebol. No local do antigo estádio funcionaria um centro de treinamento para atletas, inclusive para futuros jogadores de futebol. Vejo este livro ser reeditado contínuas vezes.
Bolas do Darlan Você certamente já as viu, espalhadas pelos gramados de Brasília, como em frente ao Memorial JK ou depois da ponte Costa e Silva, no Lago Sul. São grandes esferas de aço carbono criadas pelo artista plástico Darlan Rosa, mineiro de Coromandel, personagem histórico da televisão em Brasília, quando, entre 1968 e 1971, desenhava, com as duas mãos, ao vivo, no programa Carroussel, da pioneira TV Brasília. Tio Darlan era um grande sucesso. Tempos depois criou o personagem Zé Gotinha, campanha que erradicou a poliomielite no Brasil. Aposentado, no final dos anos 90, começou a criar as famosas bolas, hoje expostas em vários países. Um belo desdobramento do projeto das bolas é o parque de esculturas interativas ao ar livre, em exposição permanente no CCBB da capital, criadas para o uso de crianças e adultos.
Bom Demais Um bar que entrou na história da cidade e na biografia da Cássia Eller. Pegando carona na cena roqueira local, mas com força e estilo próprios, Cássia Eller, uma garotinha doce e feroz, um cometa que nos iluminou. Foi no Bom Demais, na 706 Norte, que Cristina Roberto, a dona, pagou à Cássia seu primeiro cachê. Dali ela se revelou e partiu para o estrelato, no final dos anos 1980. Os shows dela lotavam sempre e o pessoal que ficava de fora assistia, sem pagar, embaixo de um enorme toldo. Bom demais, mas não existe mais.
Bonde andando Uma coisa pra mim é certa: JK não foi pego de surpresa quando, ao lançar sua campanha à Presidência da República, em Jataí, Antônio Soares Neto, o Toniquinho, lhe perguntou se eleito honraria o que dizia a Constituição quanto à mudança da capital para o Brasil Central. Daí sua resposta rápida e afirmativa. Acredito que JK, esperto e muito bem informado, sabia que os estudos para a transferência da Capital estavam bem adiantados. Vejamos as datas: o lançamento da campanha em Jataí foi no dia 4 de abril de 1955. Onze dias depois saiu a decisão da Comissão de Localização da Nova Capital, elegendo o Sítio Castanho, onde está o Plano Piloto, como o local ideal para a construção de Brasília. Ele sabia. JK pegou o bonde andando. E desembarcou em Brasília (de avião!).
Borboleta Lucio Costa, o criador de Costapolis (outro nome que Brasília poderia ter), ficava irritado quando comparavam o desenho do Plano Piloto com um avião. Segundo ele, sua criação se parecia mais com uma borboleta. Estudante, em 1922 esteve em Diamantina, terra natal de JK, mas lá não o encontrou. O jovem futuro presidente, então com 20 anos, mesma idade de Costa, estava em Belo Horizonte, preparando-se para o vestibular de medicina. Lucio conheceu Le Corbusier em 1936 e tornou-se urbanista. Quatro anos depois criou os edifícios do Parque Guinle, no Rio de Janeiro, o primeiro conjunto de prédios construídos sobre pilotis no Brasil, deixando o térreo vazado, como faria nas superquadras de Brasília. O ano de 1954 seria um dos mais tristes da sua vida. Morreu a esposa, Julieta Guimarães, vítima de um acidente automobilístico, num carro por ele dirigido, que derrapou e bateu em uma árvore. No filme O Risco, sobre sua vida e obra, pode-se admirar Leleta, como ele a chamava, uma mulher radiante e luminosa. Alimentou, desde então, um sentimento de culpa pela tragédia. Nunca se perdoou. Tanto que não veio à inauguração de Brasília em consideração a Julieta, que, segundo Lucio Costa, adoraria estar aqui no dia 21 de abril de 1960. Dizem que por causa do acidente ele desenhou uma cidade quase sem cruzamentos, com tantas tesourinhas e vias sob o Eixão. Dizem. Em 1957 venceu o concurso do Plano Piloto de Brasília e sua apresentação, composta de 17 folhas datilografadas e desenhos ilustrativos, era tão simples que constrangeu o júri. Segundo cálculos que o próprio JK fez, Lucio Costa teria gasto 25 cruzeiros em serviços de datilografia, papel, lápis, tinta e borracha para preparar sua exposição, enquanto outros chegaram a desembolsar 400 mil cruzeiros, com maquetes sofisticadíssimas e gráficos superelaborados. Gastou 25 e recebeu 1 milhão de cruzeiros por ter vencido o concurso. Brasília foi o grande acontecimento do urbanismo no século XX, e diante do sumiço do nome de Lucio Costa, em segundo plano pela notoriedade de Oscar Niemeyer, o urbanista passou a dizer sempre “Brasília, cidade que inventei”. Em 1992, seis anos antes de falecer, inaugura-se na Praça dos Três Poderes o Espaço Lucio Costa, discreto, simples, como ele era. Respeitadíssimo, correto, humano. Dizer que Lucio Costa foi um gênio é pouco.
Brasilia Planeta telescópico, existente no “cinturão de asteroides” entre Marte e Júpiter. O nome é uma homenagem a Dom Pedro II, que era um grande incentivador da astronomia, pois em latim Brasil escreve-se Brasilia, sem acento. De número 293, esse corpo celeste foi descoberto por Auguste Honoré Charlois em 20 de maio de 1890, em Nice, França. Tem cerca de 65 km de diâmetro, a distância entre a cidade de Santo Antônio do Descoberto, em Goiás, e a Rodoviária de Brasília.
Brasília Extinta terceira capital do segundo Quinto Império Cerratense, localizada no centro do grande deserto sul-americano. Escavações arqueológicas realizadas no final do século XXIII revelaram as ruínas grandiosas da primeira cidade modernista da história, construída na segunda metade do século XX por uma raça de gigantes, os candangos. Foi soterrada por ondas contínuas de enormes tempestades de areia. As mudanças climáticas, o uso intensivo do solo e o desperdício de recursos hídricos levaram à inevitável desertificação de grandes áreas em volta da lendária cidade. No turismo estelar, visitar as ruínas de Brasília é obrigatório para quem está de passagem pelo desabitado Planeta Terra.
Bric-A-Brac De Brasília para o mundo, com amor. E arte. Importante revista de literatura no Brasil na segunda metade da década de 1980. Revista mais que revista: coletivo. Um inédito de Manuel Bandeira, entrevista com Manoel de Barros antes da fama, manuscrito de Paulo Leminski, desenhos de Zuca Sardan, papo cabeça com José Mindlin, colaboração de Augusto de Campos. Tudo sob a batuta do maestro Turiba e sua orquestra de poetas, ilustradores, rabiscadores, designers, fotógrafos.
Brutalista É um estilo arquitetônico radical que não esconde as estruturas da construção, mostrando paredes, vigas e pilares, sempre em concreto aparente, sem pinturas, sem ornamentação, bruta. Ironicamente, o exemplo mais visível desse jeito de construir é a sede da nossa maior biblioteca pública, a da UnB. Os arquitetos brutalistas também amam, nem que sejam suas próprias criações.
Buriti Ou a solidão do poder no meio da Praça, onde funciona o executivo local. Plantado, morto, replantado, machucado a machado. Alguém leu o livro Pelo sertão, de Afonso Arinos de Melo Franco (1868-1916), e assoprou o texto no ouvido de Israel Pinheiro, que mandou plantar a palmácea. “Se algum dia a civilização ganhar essa paragem longínqua talvez uma grande cidade se levante na campina extensa que te serve de soco, velho buriti perdido.” Afonso Arinos acertou mais que Dom Bosco.
Outros verbetes de BRASÍLIA-Z – Cidade-palavra, de Nicolas Behr
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