O senador Aécio Neves (PSDB-MG) foi surpreendido em tenebrosas transações com os irmãos Batista, principais proprietários da empresa JBS. Elementos robustos, incluindo gravações de conversas, indicavam a utilização ilícita do influente mandato parlamentar para viabilização de escusos interesses empresariais. Integra o grotesco episódio a remessa de dois milhões de reais por intermédio de um parente do parlamentar. Segundo o próprio Aécio, outrora o maior paladino da moralidade nacional, a escolha do portador do numerário incluía a condição de poder ser morto antes que resolvesse denunciar o esquema (“Tem que ser um que a gente mata ele antes de fazer delação. Vai ser o Fred com um cara seu”).
Em função dessas peripécias, o senador Neves chegou a ser afastado do exercício do mandato parlamentar por decisão monocrática do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin. Também por decisão monocrática, o ministro do STF Marco Aurélio devolveu o exercício do mandato ao senador em questão. Ocorre que na última terça-feira, dia 26 de setembro, a Primeira Turma do Supremo, após recusar a determinação de prisão do representante das Minas Gerais na Câmara Alta, decidiu, por três votos a dois, adotar uma série de medidas cautelares, abrangidas: a) a suspensão do exercício do mandato e b) a obrigatoriedade de recolhimento domiciliar noturno.
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A referida decisão do Supremo Tribunal Federal, por uma de suas turmas, reacendeu um intenso debate acerca da validade jurídica da aplicação, pelo Judiciário, de medidas cautelares aos parlamentares diante do disposto no artigo 53, parágrafo segundo, da Constituição (“Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”).
Um considerável e respeitável número de operadores do Direito sustenta a impossibilidade jurídica de aplicação de medidas cautelares aos parlamentares. Advogam que, se a prisão é incabível, também não é viável a imposição de medidas alternativas. Estas últimas, a rigor, somente seriam possíveis na medida em que a prisão também o fosse. Por essa linha de pensamento, somente a casa legislativa pertinente poderia deliberar pelo afastamento do exercício do mandato. Assim, estariam resguardados e prestigiados: a) o voto popular; b) a cidadania; c) a democracia e d) a separação de poderes.
É preciso, sobretudo na atual quadra da vida nacional, empreender um importante esforço no campo das reflexões jurídicas para, resguardados os direitos fundamentais e a separação de Poderes, viabilizar ferramentas mais eficientes de combate à criminalidade generalizada instalada nas mais altas esferas de condução do Poder Público. A criminalidade organizada e sistêmica solapa o Estado Democrático de Direito, suas instituições e o próprio exercício dos direitos fundamentais por milhões de cidadãos. Assim, numa sociedade complexa e plural não é possível, para casos de criminalidade com amplos efeitos sociais, adotar critérios interpretativos individuais, excessivamente formais, insatisfatórios e ineficientes para a legislação de combate à delinquência institucionalizada.
Existem situações marcadas pela prática reiterada, pelo acusado, de uma variedade grande e articulada de ilícitos de extrema gravidade. Um meliante profissional, com fortíssimos indícios e provas já postas, da prática permanente de formação de quadrilha, coação de testemunhas, destruição de provas, corrupção passiva ou lavagem de dinheiro é um atentado ambulante à ordem pública, à instrução criminal e à aplicação da lei penal. Assim, a prisão preventiva e as demais medidas cautelares, notadamente na modalidade de “garantia da ordem pública”, como meio de coartar a prática delituosa contumaz, estará bem assentada no Código de Processo Penal (artigos 282, 312, 319 e 321) e na jurisprudência mais moderna (HC/STJ n. 332.586 e HC/STF n. 95.024, por exemplo).
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Não é possível vislumbrar, no aludido Código de Processo Penal, indicação no sentido de que as medidas cautelares diversas da prisão preventiva (que também é uma medida cautelar) somente podem ser decretadas nas situações em que a prisão poderia ser efetivada. Observe-se, em especial, a dicção do art. 282, inciso I, do CPP, admitindo expressamente a adoção de medidas cautelares: a) diante da necessidade de aplicação da lei penal; b) para resguardo da investigação; c) para proteção da instrução criminal e d) para evitar a prática de infrações penais. Portanto, as medidas cautelares penais buscam proteger o processo ou a sociedade. Ademais, essas medidas não são propriamente substitutivas da prisão, como sugere a literalidade do parágrafo sexto do art. 282 do CPP. O comando constitucional superior, presente no artigo quinto, inciso LXVI, orienta a inteligência da aplicação das medidas cautelares ao definir, sem qualquer margem de dúvida, a excepcionalidade da prisão e a liberdade como regra.
Chegamos a um ponto fundamental na análise dessa sensível questão da aplicação de medidas cautelares penais aos parlamentares. A proteção constitucional do citado art. 53 está voltada para a garantia do exercício do mandato de forma altiva, independente e nos marcos da juridicidade. Não se volta, a prerrogativa, para construir uma muralha de proteção em relação aos desvios claros e evidentes dos mais elementares padrões de regularidade ético-jurídicos. Essa conclusão é possível diante da constatação de que: a) a proteção ao titular do mandato é excepcional e deve ser interpretada restritivamente; b) a Constituição aponta quais os valores e princípios a serem prestigiados na atuação pública, particularmente a moralidade, a probidade, a legalidade e a impessoalidade e c) a Constituição qualifica o abuso de prerrogativas asseguradas ao membro do Congresso Nacional como algo incompatível com o decoro parlamentar (artigo 55, parágrafo primeiro). Não custa registrar que um dos pilares da ideia de República é a efetiva possibilidade de responsabilização dos agentes políticos. Assim, não faz o menor sentido, salvo diante da presença de um apego a um formalismo equivocado e um raciocínio dificultador do combate aos ilícitos mais repugnantes no trato da coisa pública, subtrair os parlamentares do raio de ação das medidas cautelares penais quando presentes as circunstâncias fáticas determinantes da adoção dessas providências. Nessa linha, a prerrogativa, deferida para o exercício escorreito do mandato, seria transformada num privilégio odioso, impensável numa República, a proteger o transgressor e suas transgressões.
Vejamos a situação absurda que o raciocínio pela impossibilidade de aplicação de medidas cautelares penais aos parlamentares pode ensejar. Diante de elementos robustos demonstrando a prática de ilícitos gravíssimos, inclusive a utilização do mandato parlamentar como instrumento essencial da concretização de desvios, o Poder Judiciário, especificamente o Supremo Tribunal Federal, declararia a existência do quadro dantesco e permaneceria, assim como toda a sociedade, rigorosamente inerte assistindo a atuação do parlamentar malfeitor e torcendo pelo arrependimento do dito cujo. É possível afirmar com convicção a incompatibilidade com a República e o Estado Democrático de Direito, informado por todos os valores e princípios antes destacados (moralidade, probidade, legalidade, impessoalidade, etc), da constatação segura da prática de irregularidades, principalmente por parlamentares que deviam ser exemplos de conduta reta e irrepreensível, e a impossibilidade jurídico-institucional de barrar (cautelarmente) a continuidade dos malefícios.
Ao julgar o Habeas Corpus n. 89.417, em 2006, a Primeira Turma do STF, sob a relatoria da ministra Cármen Lúcia, consignou (na ementa na decisão): “Os elementos contidos nos autos impõem interpretação que considere mais que a regra proibitiva da prisão de parlamentar, isoladamente, como previsto no artigo 53, parágrafo 2º, da Constituição da República. Há de se buscar interpretação que conduza à aplicação efetiva e eficaz do sistema constitucional como um todo. A norma constitucional que cuida da imunidade parlamentar e da proibição de prisão do membro de órgão legislativo não pode ser tomada em sua literalidade, menos ainda como regra isolada do sistema constitucional. Os princípios determinam a interpretação e aplicação corretas da norma, sempre se considerando os fins a que ela se destina”. A eminente relatora afirmou ainda: “… imunidade é prerrogativa que advém da natureza do cargo exercido. Quando o cargo não é exercido segundo os fins constitucionalmente definidos, aplicar-se cegamente a regra que a consagra não é observância da prerrogativa, é criação de privilégio. E esse, sabe-se, é mais uma agressão aos princípios constitucionais, ênfase dada ao da igualdade de todos na lei”.
Cabe uma palavra acerca da eventual apreciação pela Casa legislativa da imposição de medidas cautelares penais ao seu membro. Ora, diante da constatação da necessidade de imposição das providências, notadamente pelo rigor de análise do Supremo Tribunal Federal, estando em risco o processo ou a sociedade, como destacado, não é pertinente introduzir um juízo estritamente político na avaliação das circunstâncias condutoras da decisão. A toda evidência, o jogo político-partidário não é o mais apropriado para aferir a necessidade da adoção de medidas cautelares. A rigor, a ordem jurídica não conferiu, nem deveria ter conferido, competência dessa natureza à Casa legislativa.
O ambiente político atual acentua essa inadequação diante da quantidade de parlamentares investigados e processados por ilícitos idênticos ou semelhantes aos imputados ao senador Aécio Neves. Já a apreciação da prisão em flagrante pela Casa legislativa faz todo sentido. Essa não decorre necessariamente de atuação judicial criteriosa e pode ter sido efetivada como forma de atacar ou fragilizar o exercício enérgico e independente do mandato parlamentar.
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